Ao contrário dos guias turísticos oficiosos, organizados para impor, como um produto, uma leitura uniforme dos lugares e dos comportamentos daqueles que os habitam, os relatos de viagem, principalmente aqueles escritos pelos viajantes solitários, são sempre desordenados, tendenciosos, plenos de enganos. Observam apenas o que é dado a ver aos seus autores a partir de escolhas forçosamente pessoais e aleatórias, das circunstâncias móveis de uma presença que é fugaz, das trajetórias escolhidas em função daquilo que pode observar quem se desloca por sua conta e risco, sem roteiro estabelecido.
Este é o aspeto tomado pelos registos nos quais o poeta e viajante escocês Kenneth White (n. 1936) tem vindo a narrar as suas experiências de observação «geopoética» – a um tempo territorial, filosófica e poética – aplicadas aos lugares que entendeu percorrer à sua maneira. Sempre com a certeza de que «o nómada não segue para qualquer lugar», pouco lhe importa o fim, o destino, mas sim a experiência irrepetível do próprio movimento. Aquilo que apenas ele vê. Não deixa, apesar disso, de surpreender a descrição que faz de Portugal num capítulo do seu livro Across the Territories.
Desde logo porque, entrando de automóvel pela fronteira beirã, parando pela primeira vez em Viseu e seguindo depois pelo litoral marítimo até Sagres – único destino como tal declarado por configurar outros trajetos, outros azimutes, que os portugueses um dia projetaram –, passa ao lado, afinal como um vulgar turista, de regiões matriciais para a construção da nossa maneira partilhada de ser. Mas também porque procura captar, com idêntico engano, o mesmo tipo de essências comportamentais e identidades paisagísticas que já pelos finais do século XVIII e inícios do seguinte descortinavam os viajantes britânicos, como James Murphy, Arthur Costigan ou William Beckford, que se atreviam a percorrer, sem caminhos decentes ou estalagens asseadas, a parte do país que lhes parecia mais exótica e ininteligível, povoada de campónios baixotes e mulheres de vetusto bigode.
A mesma visão monocular, fechada, preconceituosa, centrada nas expectativas pessoais e não na busca do excepcional. Por isso White recorda com desdém, da sua passagem por Coimbra pelos meados da década de 1990, ora veja-se, apenas o triste recheio do minibar do quarto de um hotel decrépito. Ou, de Lisboa, a fealdade nua das ruas da Baixa pombalina que numa tarde de sábado atravessou com desprazer. Muito pouco para um militante confesso da vida nómada. Mas o habitual num viajante que resolveu prescindir de mapas e guias turísticos. E teve azar ou falta de imaginação.
Versão retocada da crónica publicada no Diário As Beiras.