Entre quem se interessa pela história do século XX circula por vezes a ideia de que o período que se seguiu ao final da Segunda Guerra Mundial correspondeu a um tempo de esperança e otimismo, marcado por um sentimento de alívio e por um novo clima de paz, que antecipou a fase de crescimento económico e demográfico, relativamente próspera e tendencialmente igualitária, que decorreu nas décadas de 1960-1970. Como mostrou o britânico Antony Beevor na obra Paris após a Libertação (1944-1949), é verdade que por esses anos em algumas regiões se produziu um simulacro coletivo de felicidade e uma vontade de recuperação do tempo perdido que podem sustentar essa perceção. Mas esse é um retrato muito parcial e bastante enganador.
Em Continente Selvagem, o historiador Keith Lowe mostra-nos o oposto, revelando um continente quase inteiramente mergulhado na destruição, na miséria e no caos. As paisagens tinham sido devastadas, cidades inteiras arrasadas e mais de trinta e cinco milhões de pessoas mortas. As instituições que hoje tomamos como certas e seguras – a polícia, os transportes, as comunicações, os jornais, as fábricas, os mercados, os governos locais e nacionais – eram agora apenas um simulacro ou estavam completamente ausentes. A taxa de criminalidade subia em flecha, as economias haviam colapsado e a maior parte dos europeus vivia no limiar da fome. A Europa permanecia assim atormentada pela violência e pela confusão moral, até porque vastos segmentos da sua população não aceitavam que a guerra tivesse verdadeiramente terminado, alimentados pelo desejo de vingança (sobretudo contra os colaboracionistas, uns reais, outros imaginados), pela vontade de proceder a uma limpeza étnica (em particular sobre importantes minorias, a começar pelas de origem germânica), pelas guerras civis emergentes (principalmente nos Balcãs e na Europa de Leste) e pelo crescimento exponencial da criminalidade.
A construção da paz e da estabilidade na Europa correspondeu pois, nessa fase, a um processo longo e muito, muito difícil. O livro de Lowe é uma janela projetada para esse breve e caótico período, vivido entre o fim do maior conflito da História e o início da Guerra Fria, que por tal via nos pode ajudar a compreender alguns dos problemas que se põem no presente. A Grécia e a Alemanha que hoje conhecemos, os seus dramas, escolhas e dilemas, por exemplo, não podem ser cabalmente entendidos sem olhar esse tempo de conflito, miséria e ódios à solta. Uma das realidades que ao viajarmos até esse tempo mais nos pode perturbar foi, aliás, o drama das populações refugiadas, com semelhanças profundas àquele que nos encontramos a viver.
Este drama passou, em primeiro lugar, pelas deslocações motivadas pela guerra, tendo envolvido largos milhões de pessoas. Este é um facto mais ou menos conhecido. Menos conhecida, porém, foi a deslocação forçada de populações inteiras imposta pela fixação de novas fronteiras e pela tentativa de, dentro de cada Estado, apenas aceitar os habitantes «certos» ou politicamente «aceitáveis», expulsando os outros ou fazendo-lhes a vida de tal forma difícil que se viram forçados a sair precipitadamente. 600.000 húngaros foram expulsos da Checoslováquia em 1946, e mais 300.000 foram-no no ano seguinte, seguindo para a Hungria. Por sua vez, esta expulsou centenas de milhar de romenos, empurrados também para fora da Ucrânia. Os albaneses foram obrigados a sair da Grécia, os italianos foram expulsos da Jugoslávia, 250.000 finlandeses foram empurrados para fora da Carélia (hoje parte da Rússia), enquanto a Bulgária atirava para fora das suas fronteiras perto de 200.000 turcos e ciganos. E a lista poderia continuar por muitas linhas.
Olhamos relatos e fotografias dessas operações – que podemos, aliás, comparar com as que, poucos anos depois, envolveram os 250.000 húngaros forçados a abandonar o seu país após a derrota da revolução antiestalinista de 1956 – e ficamos perplexos com a semelhança avassaladora daquela gente, homens com crianças ao colo, idosos arrastando-se penosamente, mulheres simulando um nicho de conforto no meio da devastação, carregando todos, apesar da condição material desafogado que muitos haviam tido, os parcos haveres que conseguiam transportar. Olhamos tudo isso e surpreendemo-nos penosamente: são imagens tão parecidas com aquelas que hoje nos chegam, muitas provenientes até das mesmas regiões da Europa, que parece impossível entender de que modo a impiedade dos poderes e dos povos pode ver-se tão perigosamente proscrita da memória partilhada da humanidade. Da nossa memória.
Publicado no Diário As Beiras