Quem tenha a paixão (ou o vício) da história, em particular daquela que converge com o presente, habitua-se a colocar tudo em perspetiva, rebuscando com frequência no passado para compreender o presente. Ou, mais proactivamente, para ajudar a superá-lo. Por muito que estejamos a viver uma situação política substancialmente nova, o que possa resultar dela, ainda que dotado de roupagem inovadora, jamais deixará de se inscrever numa sequência. Se tal não acontecer, tudo se precipitará no primeiro precipício que surja pelo caminho. Mas quem se fixar nesse passado, recusando a mudança, caminhará em círculo até cavar o seu próprio buraco. Falo, naturalmente, da situação pós-eleitoral e da possibilidade constitucional que poderá funcionar como alternativa a mais um governo de direita.
O Partido Socialista vive num impasse e, pela primeira vez em muitos anos, tal como aliás tinha previsto quem não o via como um monólito, tem perante si escolhas que não se traduzem na mera rotação de rostos e clientelas. Os últimos tempos de António José Seguro, as primárias que confirmaram António Costa, a campanha eleitoral (com o seu cortejo de propostas, compromissos, erros e omissões) e agora, de forma mais evidente, o período que se segue de imediato às eleições, demonstram a tendência para uma clivagem que, a médio prazo, parece inevitável. E que pode ser saudável para o sistema político. Acredito que a maioria dos seus militantes já percebeu que não é só o futuro do país que está a ser jogado neste momento: o próprio futuro do partido está em causa perante a inevitabilidade de uma decisão. A escolha ainda não é clara, mas por certo sê-lo-á em breve: entre a ala direita, de «blairistas» mais ou menos retardados, que quer negociar migalhas com a coligação impelindo o eleitorado para a esquerda e fazendo do PS um novo PASOK, e a ala esquerda, que conservando uma matriz socialista e social-democrata «aggiornata», ensaia um retorno à tradição de defesa da democracia e da solidariedade.
O Partido Comunista tem outro tipo de desafio pela frente. Apesar de ter conseguido mais um deputado, as eleições não lhe correram muito bem. Manteve, como seria de esperar, a sua base essencial de apoio e militância, mas não conseguiu rompê-la. Apesar do esforço de campanha, e da tentativa de puxar para a primeira fila pessoas mais jovens nas diversas ações, é óbvio que a sua «cultura de classe», a linguagem previsível de muitos dos seus ativistas, as suas propostas de rutura com a União Europeia e o euro, o discurso tendente a colar o PS à direita, que só no final da campanha abrandou ligeiramente, não calaram bem no eleitorado mais urbano e de classe média, que manteve o seu apoio aos socialistas ou transitou para o Bloco de Esquerda. A sua louvável inflexão pós-eleitoral, aceitando agora uma eventual colaboração de incidência parlamentar ou mesmo governamental com o PS, é uma boa surpresa. Sabemos que a cultura do PCP tem sido sempre uma «cultura de poder» e de tentativa de hegemonização das alianças nas quais participa. Mas a abertura a uma confluência «patriótica e de esquerda» bastante aberta, que vise responder à emergência nacional que seria o retorno a um poder sem controlo da coligação de direita, é um fator positivo. Quero crer que, a confirmar-se, ela gerará laços de confiança que de futuro permitam ao partido superar alguma da rigidez na relação com as restantes esquerdas.
O Bloco de Esquerda encontra-se numa situação peculiar e inesperada. A excelente campanha que fez, vibrante e muito bem conduzida, com protagonistas que transmitiram uma ideia de frescura e de responsabilidade, permitiu-lhe recuperar confortavelmente de um processo de isolamento e recuo que parecia irreversível, relevando o facto de não possuir, ao contrário do PCP, um número alargado e experiente de quadros técnicos e políticos. Conseguiu inclusive, pelo menos de forma transitória, suavizar em termos públicos as contradições que se traduziram, após a última convenção, numa direção partilhada por diferentes sensibilidades. Conseguiu ainda minimizar, junto do eleitorado, o facto de não ter apresentado um programa de governo. E apesar de também ter voltado as suas baterias contra o PS, que muitos dos seus militantes continuaram a considerar «inequivocamente de direita», colocou em cima da mesa, no final de campanha, uma possibilidade de colaboração que com certeza lhe trouxe simpatia e votos. Se tal tivesse ocorrido mais cedo, teria provavelmente evitado o afastamento de alguns quadros e simpatizantes. Resta perceber se a disponibilidade para apoiar uma solução governativa de esquerda será efetiva, condicionada ou submetida a exigências que a possam inviabilizar. Mas quero acreditar que o pragmatismo, isto é, a aguda noção daquilo que é prioritário para a vida da maioria dos portugueses, determinará as escolhas imediatas do Bloco.
Neste contexto, os próximos dias vão ser decisivos. A possibilidade de um governo minoritário do Partido Socialista, fundado em acordos de natureza parlamentar, ou mesmo governativa, com o PCP e com o Bloco de Esquerda, é algo de novo. Que não só traduz a votação real da maioria dos portugueses, claramente alinhados à esquerda – mesmo com a ausência do meio milhão de novos emigrantes que em larga medida votaria consigo –, como abre hipóteses de um tempo novo, que continuará a ser difícil, mas também poderá ser empolgante e de esperança. Provando que a histórica «irresponsabilidade da esquerda», no passado sempre pronta a digladiar-se em nome de princípios inamovíveis, será capaz de dar lugar a uma experiência de lucidez, ousadia, realismo e compromisso.