Todos temos, de quando em vez, a necessidade de idealizar um lugar que seja improvável, mas não impossível. Um daqueles espaços, ou ambientes, nos quais, como nas cidades invisíveis, cuja descrição Italo Calvino colocou na fala imaginária de Marco Polo ao imperador Kublai Khan, projetamos alguns dos nossos melhores desejos. Na verdade, toda a dinâmica da mudança exige que a pensemos previamente num espaço concreto, cujo desenho ultrapasse as circunstâncias do momento e tenha condições de apontar para outras, inexistentes, mas absolutamente plausíveis. Nas quais por antecipação nos sintamos mais capazes e também, se possível, mais felizes. Só assim conseguiremos superar a repetição e o tédio do previsível, evitando afundar-nos numa sociedade bloqueada e sem futuro.
Uma dessas formas de pensar o possível passa por observar ou por visitar realidades distantes, que muitas vezes concebemos como provavelmente melhores e mais completas que as nossas, mesmo sabendo que jamais serão perfeitas. Ainda que com os inevitáveis defeitos inerentes ao humano, durante largas décadas, para muitos portugueses, as democracias nórdicas foram constituindo, se não o lugar exclusivo da utopia – existiam, como sabemos, outros modelos e diferentes utopias –, com toda a certeza um espaço onde se julgava possível respirar um sentimento geral de aceitação e de respeito para com as opiniões alheias. Daí, provavelmente, a atração recente de muitos portugueses pela série televisiva Borgen.
O universo de ficção que esta integra é, em grande parte, suportado por uma realidade que, em sociedades, desgastadas por décadas de ditadura, consumidas pelo sectarismo político e vivendo ainda um défice de cultura democrática, como o é a nossa, parece ao mesmo tempo estranho e exemplar. O jogo político que a série dinamarquesa representa, tantas vezes duro e nem sempre leal, como todos os jogos que envolvem as dinâmicas do poder, subordina-se sempre a dois princípios básicos: primeiro, o de que os cidadãos sabem pensar por si e escolhem mais ideias, reputações e vontades do que rótulos e proclamações balofas; segundo, o de que a transversalidade do sistema político pode admitir a colaboração de quem, na sua diversidade, é capaz de dialogar e de colocar em cima da mesa das negociações um projeto governativo coerente e eficaz em termos de gestão da coisa pública.
A diferença para a conjuntura portuguesa atual é flagrante. A forma como a maioria da nossa comunicação social e uma parte do sistema político estão a abordar e a pôr em causa as reconfigurações políticas neste momento em curso é perturbante. Como se, na Constituição que temos, estivesse inscrita, e sabemos que não está, uma obrigatória clivagem entre aqueles que têm o direito de governar e aqueles, condenados à margem e à exclusão, que devem ser confinados a um mero papel de protesto. Como se existissem partidos políticos de primeira e de segunda, deputados de primeira e de segunda, eleitores de primeira e de segunda. Credíveis contra irresponsáveis. Rigorosos contra dissipadores. Seres angélicos contra impenitentes demónios.
Numa democracia sustentada por uma opinião informada de forma livre e plural, e confiante nas capacidades e nas possibilidades de todas as partes que a compõem, tal é inteiramente inaceitável. E esse é o exemplo que podemos colher do ambiente civilizadamente democrático sobre o qual se ergueu a ficção televisiva de Borgen. É legítimo concebê-lo também para Portugal. Vai custar, vai levar tempo e ter de ultrapassar muita incompreensão, mas havemos de conseguir.
Publicado no Diário As Beiras