Nestes dias de pausa e expectativa em que se pode respirar alguma esperança e se inicia um processo de reconfiguração política do país, e quando aquilo que possa escrever já não será interpretado como um apelo à dúvida ou à divisão, chega o momento de fazer um curto balanço pessoal das minhas escolhas políticas dos últimos anos.
Entre 1999 e 2014 fui simpatizante, colaborador e sempre eleitor do Bloco de Esquerda. Por duas vezes cheguei mesmo, em eleições autárquicas, a ser seu candidato independente. Só não fui militante porque sou naturalmente avesso a afirmar certezas quando tenho dúvidas e a militância partidária ativa exige alguma capacidade para delas publicamente abdicar. Respeito quem pensa de forma diferente e se dispõe a agitar bandeiras, mas tomo para mim, como uma espécie de princípio orientador, a afirmação de Camus segundo a qual «se existir um partido dos que não têm a certeza de ter razão, eu farei parte dele.» Tal não significa, porém, que negue a importância da atividade partidária, absolutamente nuclear em democracia, e me recuse a com ela confluir. Como não significa a ausência de um pertinaz empenho nas barricadas comuns do combate por uma sociedade mais justa, mais livre, mais igualitária e mais feliz, no qual me mantenho desde 1969. Na realidade, durante quase todos aqueles quinze anos, do BE apenas me separaram algumas, pouquíssimas, posições no campo da política internacional. Divergências políticas mais sérias, só as comecei a sentir em 2011, quando o Bloco e o PCP, por causa das implicações do PEC4, votaram a queda do governo socialista de José Sócrates, abrindo objetivamente caminho à vitória da direita e não aceitando depois fazer a autocrítica desse passo.
Entre 2011 e 2014 fui-me, pois, afastando um tanto, apesar de nesse último ano ainda ter apoiado com gosto a candidatura de Marisa Matias ao Parlamento Europeu. Mas o acantonamento numa ação política essencialmente protestativa e a posição de constante e irredutível ataque ao PS passaram a parecer-me desproporcionados e perigosos. Defendi desde então, isto é, desde 2011, e mesmo mantendo reservas em relação certas escolhas dos partidos a envolver, a absoluta necessidade de uma convergência à esquerda, imperativo que a catastrófica governação da coligação PSD-CDS apenas veio reforçar. Por isso participei, como um dos primeiros signatários, no Congresso Democrático das Alternativas e no Manifesto 3D, tendo também assinado o documento de criação do Movimento por uma Esquerda Livre. Por isso também aceitei participar nas listas da candidatura do Livre/Tempo de Avançar. Cujos desastrosos resultados não invalidaram a justeza e o realismo da sua proposta de entendimento à esquerda. Em todos estes momentos, o meu objetivo foi um só: alinhar com quem me pareceu defender com clareza uma cooperação entre PS, BE, PCP e outras forças e pessoas de esquerda, no sentido de construir uma alternativa credível e vencedora à coligação de direita.
A escolha não foi fácil. Apesar de não ter qualquer protagonismo nas atividades desses movimentos, ela custou-me diversas incompreensões e mesmo, o que só me acontecera em 1977 quando abandonei a minha única militância partidária, algumas animosidades por parte de quem entendeu a minha opção – afinal aquela que quase todas essas pessoas, e ainda bem, agora defendem tenazmente – como uma espécie de deslealdade para com os ideais e programas que entendiam como únicos e não partilháveis. Ideais e programas tantas vezes preconceituosos e sectários, capazes de transformar em inimigos aqueles que poderiam e deveriam ser aliados naturais. O facto desta aproximação ter sido agora concretizada, representa, pois, para mim, um momento de grande esperança e de felicidade. Misturado, admito, com algum sentimento de orgulho por tê-la defendido publicamente quando era difícil, e continha mesmo custos pessoais, fazê-lo de forma declarada. Dentro de um campo historicamente marcado por combates intestinos determinados, uma, e outra, e outra vez, por divergências menores, transformadas à primeira oportunidade em certezas irredutíveis e distanciamentos de natureza política ou mesmo pessoal, a unidade, mesmo a unidade na diversidade, permanecia uma quimera.
Virada a página, estamos agora numa nova fase. A colaboração entre o PS, o BE e o PCP com vista à derrota da direita e à construção de um governo democrático de regeneração nacional, apoiado na maioria dos deputados eleitos, é algo de novo mas que não configura um qualquer passe de mágica. É resultado do impacto da realidade, somado à tomada de consciência por muitos militantes desses partidos, de uma necessidade imperiosa. Todavia, o caminho está por construir e ninguém pode saber muito bem por onde seguirá. É desejável que o acordo se mantenha, tal como, a meu ver, é imprescindível que os partidos conservem a sua identidade. O PS não pode abandonar uma parte da classe média que receia mudanças rápidas e profundas, o PCP continua a levantar a bandeira de um projeto de sociedade que tem tanto de sedutor quanto de unívoco e devedor de um modelo, e o BE permanece aberto à convivência de uma ideia de modernidade imersa num caldo de cultura essencialmente europeu e solidário. Mais tarde ou mais cedo cada um retomará o seu caminho. Mas a minha esperança é que, com o processo que agora se inicia, as desconfianças atávicas e as animosidades dispensáveis percam a sua razão de ser, configurando possibilidades de cooperação em proveito do bem comum. E a todos transformando, na aceitação partilhada dos princípios essenciais da civilidade democrática.
Se é que isso interessa a alguém para além de mim mesmo, o papel que neste contexto irei desempenhar será sempre o de, à esquerda, alinhar onde parecer útil doar o meu contributo. E para onde for convocado. Sem preconceitos ou exigências, mas também sem baixar as guardas de um permanente espírito crítico. Não será defeito, mas é com toda a certeza uma questão de feitio.