Como aconteceu com tantos milhões de pessoas de diversas gerações, credos, gostos e modos de estar, a morte de David Bowie não me deixou indiferente. Aliás, mesmo que eu o quisesse, isso seria impossível, dada a catadupa de notícias, memórias, entrevistas, vídeos, documentários, fotografias, músicas, dossiês temáticos e muito, muito mais, projetando por todo o lado a vida, a morte e a presumível imortalidade do «Brixton Boy».
Admito que não o fui, não sou, um absoluto incondicional de Bowie. Terei gostado muito de boa parte do que fez como músico, ator, performer, «artista visual» (como lhe chamou Annie Leibovitz), e outras coisas mais, mas terei ficado razoavelmente indiferente a algumas outras. Em cada álbum, por exemplo, escolhi sempre três ou quatro temas, deixando os restantes mais ou menos de parte. E não, não viajei até ao sétimo céu com as palavras do Major Tom em Space Oddity. Em 1969, aliás, as viagens espaciais que me ocupavam eram outras.
O que me fez então ter vivido a sua morte quase como um luto pessoal? O que fez com que tantas pessoas se unissem, numa pena e numa admiração tão evidentes, perante a sua morte inesperada? Apesar, sabemo-lo agora, de, em Lazarus, a canção e o vídeo do seu último álbum, esta ter sido quase explicitamente anunciada. Ensaio uma resposta parcial a estas duas perguntas, procurando não repetir o que já foi escrito.
A dimensão de ícone e de astro pop total que Bowie deteve, com tudo o que isso significa de inserção, mais ou menos explícita, na cultura urbana que impregna o nosso quotidiano, não pode, neste exercício, deixar de ser tida em linha de conta. Mesmo sem procurarmos olhá-la, a sua imagem cresceu no meio de nós, como a das árvores ou a dos pássaros, nos quais podemos não reparar mas dos quais sentimos a falta à menor ausência. Estava aqui, mesmo quando não estava, mas agora desapareceu de vez.
Depois há que ter em conta o caráter quase unanimista das suas propostas visuais e estéticas. Mesmo a falta de densidade política explícita de muitos dos seus comportamentos e escolhas – ressalvando, claro, o delírio provocador de juventude que foi, em 1976, ter feito uma saudação nazi para um grupo de fãs que o esperavam em Victoria Station – situa-se mais no domínio das propostas estéticas transversais do que no da escolha assumida de um campo. Afinal, um ano depois do episódio, o cantor disse em entrevista ao Melody Maker que naquela época estava «out of my mind, totally, completely crazed». Se virem as imagens, disponíveis no YouTube, entenderão.
É também de considerar a dimensão inovadora, e neste sentido fundadora, do seu contributo estético e visual, associado em larga medida aos excessos dos sentidos, à recusa da norma e à naturalização da androginia, por exemplo, que ajudou muito a que a cultura pop pudesse emancipar-se da dimensão, comparativamente moderada, que a pautou ainda nos anos 60. Boa parte da representação exuberante que a memória partilhada retém desse período foi realmente proposta na década seguinte, por influência de Bowie e dos seus sucessivos epígonos.
Por fim, a perenidade e a força da presença mediática de David Bowie, associada a um fortíssimo sentido cénico da sua relação com o público e com a vida, conferiu-lhe uma auréola quase a-histórica, de detentor do sempre indagado «elixir da eterna juventude». O que faz com que muitos de nós nele encontrasse o exemplo vivo da possibilidade heróica, pós-sixtie e pós-moderna, de escapar à ditadura do tempo. Neste sentido, muitos foram, boys and girls com algum lastro de vida, aqueles que de repente se sentiram um pouco órfãos. Talvez parte da ideia ainda juvenil que tivessem de si próprios tenha sido coletivamente confrontada com a hipótese do fim. Falo por mim, pelo menos.