Há alguns dias, a propósito do lançamento em Espanha dos diários da poeta russa Marina Tsvietáieva, Antonio Muñoz Molina escreveu o seguinte no suplemento literário do El País: «Dizia George Orwell que a grande cegueira da esquerda europeia nos anos trinta tinha sido querer ser antifascista sem ser antitotalitária: em termos mais claros, denunciava a Hitler, Mussolini e Franco [em Portugal, acrescento, também a Salazar], fechando os olhos aos crimes de (…) Estaline. Essa antiga cegueira continua sem se dissipar de todo: a diferença é que agora a ninguém falta a informação contrastada necessária para curar-se dela.»
Não sendo este um tema premente nas preocupações políticas da esquerda internacional, ou sequer da portuguesa, com toda a justeza e sentido mais preocupada com as prioridades do presente, estamos agora em bom tempo para olhá-lo sem temores e interditos. Como é sabido, varrer fantasmas para debaixo do tapete só os esconde temporariamente, e quando saímos das declarações diplomáticas das direções partidárias e viajamos até aos mitos e às crenças profundas de uma parte dos militantes – por vezes, até dos mais jovens, com escasso ou deturpado conhecimento da história – verificamos que eles continuam lá.
Para além do interesse associado à condição de investigador e de professor de história contemporânea, a curiosidade pelo interdito levou-me um dia a viajar até aquela parte da memória mais dolorosa do século XX que durante décadas permaneceu omitida ou deturpada e assim permanecia quando a descobri. Recordo como nos finais da década de 1970 li quase secretamente O Arquipélago do Gulag, o documentado relato de memória de prisão e exílio de Alexandre Soljenitsine, por este ser tomado, nos ambientes políticos que então frequentava, como mera e abjeta «propaganda do capitalismo». Distanciei-me rapidamente do trajeto político pessoal do escritor russo, mas fui depois acumulando muitas leituras de outros que passaram por idênticas experiências e sobreviveram para poder descrevê-las.
Memorialistas, escritores ou simples testemunhas, às centenas – Shalamov, Ginzburg, Ulitskaya, Grossman, Pasternak, e tantos, tantos outros –, foram legando uma recordação vívida e dramática de vidas ceifadas ou destruídas em nome de um projeto político que, demasiadas vezes, colocou a defesa do dogma ou o interesse de alguns grupos acima da prática da liberdade e dos valores do humanismo que fazem efetivamente parte do património identitário da esquerda. Nas últimas décadas, aliás, muitos historiadores reputados têm confirmado e ampliado o reconhecimento, sustentado em fontes idóneas, desses desvios.
Todos nos falaram, de forma intensa e comprovadamente, da realidade repressiva consubstanciada no antigo sistema de campos de trabalho e concentração soviéticos, o Gulag, cuja instalação começou logo em 1918, atingou dimensões colossais durante as décadas de 1930-1940 e serviu depois de modelo àqueles que foram erguidos noutras paragens. Mais do que de números assombrosos, esses testemunhos falam principalmente da irracionalidade de um sofrimento que envolveu muitos milhões de seres humanos, e que ainda há quem insista em ignorar ou desvalorizar. Tal como existe um negacionismo do Holocausto, tendente a minimizar ou mesmo a negar o terror nazi, existe um fenómeno idêntico em relação ao Gulag. O dever de memória, porém, não pode valer mais para as vítimas de um que para as do outro.
Esta forma de negação do universo concentracionário, que aliás hoje ocorre na própria Rússia apesar do volume imenso de vítimas sobreviventes, possui dois rostos, sem que seja possível decidir qual o mais monstruoso. O primeiro visa o apagamento do passado, com o colocar de obstáculos à divulgação de documentos e de testemunhos que tinham começado a ser divulgados nos últimos anos da vida da União Soviética e na década que se lhe seguiu. O segundo rosto é representado pelas convicções daqueles que consideram o regime repressivo estalinista como justificável por se destinar a defender uma «boa causa», sem atender, para não ir mais longe, a que muitos dos milhões de vítimas foram dedicados militantes comunistas, objeto de purgas e de execuções, ou cidadãos comuns sujeitos a iniciativas paranóicas de natureza ditatorial e a punições traduzidas em prisões, exílios, deslocações em massa, assassinatos e silenciamentos compulsivos.
Para quem desta situação tenha consciência, e apesar da passagem do tempo, essas são posições que afetam a confiança perante a autenticidade democrática de quem possa manter tal entendimento. Por isso, independentemente das prioridades de um sentido essencialmente prático, a confiança a estabelecer entre as esquerdas, tão necessária para desenvolver compromissos duradouros e eficazes, passará sempre por uma revisitação sem complexos das memórias mais negras e dos erros gravíssimos que parte delas cometeu sem deles se ter distanciado criticamente e sem rodeios. Sem dramas, mas também sem branqueamentos ou omissões. Para que todos possam encarar o futuro sem o peso dos mitos e o façam de consciência tranquila.
Versão um pouco ampliada do artigo publicado no Diário As Beiras