O Ruído do Tempo, último livro de Julian Barnes, é um romance histórico. Incorporando uma componente ficcional, centrada em particular nos diálogos, nos cenários, nos personagens secundários, no enunciar de subjetividades e, naturalmente, na trama narrativa, possui uma espinha dorsal que é o conhecimento histórico das circunstâncias que envolvem os factos mencionados e a biografia das figuras reais que as povoam. Em algumas obras do género a primeira componente é dominante, mas neste caso isso acontece claramente com a segunda. Barnes seguiu aqui, de forma muito próxima, a vida do compositor russo Dmitri Chostakovich, personalidade central da música do século XX, que viveu sempre uma relação tensa e ambígua como o poder soviético. Nas últimas duas páginas, aliás, refere as fontes históricas das quais principalmente se serviu.
Gira em torno de três momentos nos quais essa tensão emergiu de forma particularmente dramática, aproximando o génio criador da pessoa que a todo o instante teme pelo seu bem-estar e pela sua pele. O primeiro ocorreu em 1936, ano do início dos impiedosos Processos de Moscovo, quando a sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk, composta dois anos antes, foi acusada pelo jornal Pravda de se tratar de «chinfrim em vez de música», uma expressão de um inútil formalismo e, por isso, contrária ao dogma artístico do realismo socialista. Incidente que que forçou Chostakovich a uma longa fase de medo físico da prisão ou mesmo da execução, e depois a uma retratação pública que não deixou de o manter ao longo de décadas sob suspeita, cerco e vigilância.
O segundo momento aconteceu em 1949, quando José Estaline decidiu que a União Soviética deveria enviar uma delegação artística ao Congresso Cultural e Científico para a Paz no Mundo, que decorreu em Nova Iorque. Nessa altura o compositor foi objeto de uma reabilitação temporária e forçado a viajar para os Estados Unidos, sendo compelido, sob ameaça de retaliações se o não fizesse, a apresentar-se, contra a sua consciência moral e sensibilidade estética, como fantoche do regime. Os discursos que leu foram escritos por outros, evitou, com o silêncio ou monossílabos, responder a perguntas embaraçosas da imprensa, fez em privado afirmações que atestavam para a sua pátria uma liberdade de criação na realidade inexistente. Ele próprio, aliás, era um exemplo vivo dessa ausência.
O derradeiro momento teve lugar em 1960, quando, em plena era kruchtcheviana, de denúncia dos excessos repressivos e do culto da personalidade de Estaline, comprovadamente contra a sua vontade o compositor aceitou tornar-se membro do Partido Comunista e ocupar cargos simbólicos de grande responsabilidade no domínio da gestão política das artes. Nessa altura, a reabilitação, aparentemente total e apresentada como um reconhecimento público do valor da sua obra, foi de facto vivida como grande e intenso drama pessoal. Na realidade, como Barnes põe na sua boca, «ao longo de todos os anos de terror, tinha podido dizer que, ao menos, nunca tentara facilitar a vida a si próprio tornando-se membro do Partido, (…) mas agora, finalmente, depois de acabar o grande medo, tinham vindo prender-lhe a alma».
Do outro lado da história, e lado a lado com Dmitri, a omnipresença de Tikhon Kherennikov. O músico medíocre mas engenhoso perito em bajulação, lambe-botas de Estaline, depois de Kurchtchev e depois ainda de Brejnev, Artista do Povo Soviético, Prémio Lenine, Prémio Estatal e Secretário Geral da União dos Compositores da URSS. Kherennikov configurava o protótipo de alguém que foi sempre foi fazendo aquilo que o poder lhe pedia ou exigia, e Chostakovich sempre viu, nele e no seu trajeto, um lenitivo para a sucessão de atos de cobardia que ele mesmo foi cometendo, a expressão acabada de uma vileza ainda maior que a sua. Alguém que se rebaixava perante «o Poder» – como ele mesmo fizera para sobreviver – mas depois se revelava incansável e prepotente quando se tratava de pisar os outros.
O romance de Barnes pode não ser, no plano literário, dos seus melhores. Lê-se com agrado, embora sem empolgamento dos sentidos. Mas é, sem qualquer das dúvidas, um testemunho literário pungente sobre como, ao contrário do que proclamam certos idealistas de um hipotético estado de bem-aventurança ética, é possível ser-se simultaneamente génio e cobarde. Pactuando com a mediocridade dominante e, ao mesmo tempo, desprezando-a profundamente.
Julian Barnes (2016), O Ruído do tempo. Lisboa: Quetzal. Trad. de Helena Cardoso. 200 páginas.