É tão certo quanto a queda das folhas dos plátanos: a meio de Setembro as praxes universitárias regressam à rua e ao debate público. Assanhando ânimos em proclamações de completa recusa ou, mais raramente, de acanhado aplauso. Desta vez, porém, isto acontece com um impacto acrescido. Em parte, devido à posição assumida pelo ministro da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior, que a transformou em prescrição remetida aos responsáveis dos estabelecimentos do ensino público. Mas também porque a observação da realidade impõe um novo olhar. O tema já cansa um tanto, mas o ruído é tal que, como proclamava o refrão da velha canção, «não podemos ignorá-lo».
E porque não? As razões mais aduzidas para justificar o interesse insistem nos abusos que não podem ser ignorados ou permitidos, seja em nome de que «tradição» for. Aliás, embora mais em algumas escolas ou cidades que noutras, as praxes surgem sem alicerce histórico real, são muitas vezes inventadas e reguladas por «comissões» que vivem na sombra, e têm-se afirmado demasiadas vezes como práticas perigosas, conduzidas quase sempre por alguns dos piores alunos das academias e na margem da intimidação ou do crime.
Ao mesmo tempo, assentam no exercício da violência física e verbal, supostamente simbólica, sem outro efeito integrador dos novos estudantes que não o da submissão cega e obediente às hierarquias e ao sexismo. Deve, no entanto, reconhecer-se que isto se aplica às praxes em si, nem sempre ao conjunto de tradições e festividades estudantis, como queimas e outras, das quais se pode ou não gostar, mas que possuem uma dimensão essencialmente festiva.
O debate sobre o tema levanta muitas questões e é impossível esgotá-las num texto curto. Mas podem referir-se aspetos menos abordados. Recorrendo ao exemplo de Coimbra, vale a pena reparar na nova realidade que a praxe não contempla e que lhe impõe um impacto mais limitado. A Universidade possui – os números são de 2014-2015 e estão disponíveis na página da UC – cerca de 22.000 estudantes. Destes, 10.800 são de mestrado e quase 2.600 de doutoramento, o que significa que os alunos teoricamente suscetíveis de participar nos rituais da praxe ronda os 39% do total. Não contando com os muitos, uma boa parte deles estrangeiros, mas não só, que recusam essas práticas ou a elas são totalmente alheios, o que pode reduzir a percentagem talvez para 25%.
Como pode o conjunto da comunidade estudantil, assim amplamente renovado, ficar submetido diariamente a coações e a rituais que, para além de violentos e anacrónicos, nada têm a ver com a nova realidade multinacional e cosmopolita, social e culturalmente distinta e mais dinâmica por comparação com um passado ainda razoavelmente próximo, que, apesar da sobrevivência de alguns atavismos, hoje pode ser encontrada nos espaços da vida estudantil? Quem convive, diariamente e de perto, com os novos setores da academia, sabe que o seu entendimento destas práticas é quase unanimemente muito negativo.
Em vez do assumir de atitudes irracionalmente «pró» ou «contra», talvez seja mais produtivo olhar-se as circunstâncias que envolvem o destaque desproporcionado das praxes, para uns quantos alunos, poucos mas muito ativos, erguidas como centro das suas existências no território universitário. As razões são múltiplas. Vão da carência de estruturas identitárias nas quais a comunidade estudantil se reveja, à quase total despolitização do quotidiano. Passam ainda pela ausência de uma cultura aberta e crítica ou pela diluição da capacidade individual para uma vida mais estimulante, autónoma e intelectualmente rica. Já existem, aliás, estudos e inquéritos de caráter científico que comprovam esta realidade.
Por isso, é natural que a alteração das vivências possa vir a tornar inevitável uma redução do impacto das praxes como expressão folclórica, na forma de abuso, de uma oca mas ostensiva normalização da obediência. Felizmente, cada vez mais alunos dos estabelecimentos de ensino superior, em particular das universidades públicas, têm vindo a percebê-lo. Mas se alguma coisa houver a mudar, é a estes, só a estes, que compete agir, renovando as suas práticas e construindo alternativas. Por isso as autoridades académicas e civis devem resistir à tentação do paternalismo, cabendo-lhes principalmente evitar os excessos. Já não será pouco.
Versão ampliada de um artigo publicado no Diário As Beiras