«Pós-verdade». O termo terá sido cunhado em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich e em 2004 Ralph Keyes usava-o já para identificar uma certa «era da desonestidade e do engano», mas foi ao longo deste ano que surgiu por todo o lado, em artigos de jornal, programas de televisão, posts das redes sociais e até debates académicos. «Vivemos um tempo de pós-verdade», diz-se a propósito da dinâmica que tem feito com que os factos objetivos – aquilo a que geralmente se chama «verdade» – tenham menor influência na formação da opinião pública e nos resultados das eleições que os apelos emotivos, as opiniões subjetivas, os boatos ou mesmo as mais despudoradas mentiras. Refere-se também a um sistema de comunicação no qual a «notícia» vale por si, pelo impacto que gera, pelo número de leitores que atrai, pelo volume de publicidade que gera, e não pelo caráter isento, completo e autêntico da informação que oferece.
O conceito é usado de forma crítica por quem considera que o vínculo à verdade está a perder importância no debate político, condicionando esta perda as escolhas dos cidadãos. O empresário Paul Horner declarou, sem sombra de inibição, que foram as notícias falsas divulgadas em «abcnews.com.co», um site do qual é proprietário e que vive da invenção de «informação», a levar Donald Trump à Casa Branca. Porquê? Porque Horner descobriu que os eleitores republicanos são menos cultos e informados, mais fáceis de enganar porque consomem e partilham notícias sem qualquer tipo de verificação. Produziu assim centenas delas, partilhadas milhões de vezes, que diabolizaram a candidata democrata e alimentaram as convicções dos eleitores norte-americanos mais racistas, homófobos e reacionários, apoiantes de Trump. No Reino Unido a campanha do Brexit serviu-se, aliás, da mesma estratégia, divulgando, entre outros, o boato, totalmente infundado, de que a permanência na União Europeia custaria 470 milhões de dólares por semana, assim afetando o resultado do referendo.
Desgraçadamente, a tendência tem vindo a expandir-se. Alguns culpam em particular o Facebook, onde é fácil disseminar boatos ou falsas informações. São situações que podem ser denunciadas por alguns utilizadores mais zelosos, mas o número dos que acreditam e que as propagam como verídicas é incomensuravelmente maior. Na realidade, não pode ser desresponsabilizada por esta deriva uma comunicação social, incluindo aquela que usa o tradicional suporte em papel, que se mostra cada vez menos fiável e independente. Na ânsia de obter audiências a qualquer preço, muitas publicações, estações ou páginas web, mergulham na vertigem do sensacionalismo e da desinformação e alimentam a confusão, brincando com a verdade, ludibriando o público e descredibilizando-se, dando tiros nos próprios pés. A tendência começou nos tabloides e nos jornais desportivos, mas agora está em todo o lado.
Pior. Há dias, num artigo de opinião sobre o assunto saído no Público, José Vítor Malheiros questionava: «O que acontece quando uma maioria de cidadãos consome ‘informação’ que não é apenas enviesada, mas totalmente falsa? As eleições livres continuam a ser possíveis?» A pergunta faz sentido, mas a resposta não pode ser negativa, pois a alternativa seria a instalação de mecanismos de «controlo da verdade» ou a exigência de graus de instrução ou de inteligência para votar «em consciência». É, no entanto, evidente, como tem sido repetidamente comprovado, que a mentira manipula, desinforma, dando rédea solta à afirmação política, pela via eleitoral, de quem melhor manipular e mais insistentemente mentir. Subverte por isso, sem dúvida, a democracia.
A alternativa só pode ser a construção de uma informação criativa, íntegra e dedicada, independente dos interesses imediatos e que se credibilize e financie a si própria, alimentando a democracia através do crescimento e da dinamização de ambientes favoráveis ao voto informado. Justamente porque se dirigirá aos cidadãos empenhados em defender o seu direito à verdade. Por muito que o neguem os pessimistas e aqueles que beneficiam do poder da mentira e do logro, eles existem.
Publicado em 26/11/2016 no Diário As Beiras (versão ligeiramente revista)