Completei ontem, 6 de Janeiro, 35 anos como professor da Universidade de Coimbra. Como é natural, quando comecei sabia menos que hoje, era mais rígido na abordagem dos programas e inexperiente no relacionamento com os alunos. No entanto, considero que a maioria das aulas desses anos iniciais foram mais «aulas universitárias» que algumas das atuais. Pelo menos como sempre entendi que as aulas universitárias devem ser: espaços de abertura ao conhecimento avançado, à troca de ideias e à cultura crítica, e lugares de preparação para a vida pessoal e profissional. Os motivos dessa involuntária degradação, manifesta ao longo da última década, são vários e complexos. Limito-me a seis.
Em primeiro lugar, as consequências do «processo de Bolonha», que às vantagens juntou escolhas a meu ver negativas, como a redução do tempo letivo e a transferência do foco pedagógico dos conteúdos para as competências. Ou, como disse há dias Richard Zimler, a passagem da educação para o treino. Em segundo lugar, o alargamento exponencial das tarefas administrativas atribuídas aos professores, reduzindo em muito o seu tempo e a energia para se dedicarem às suas aulas, aos alunos e à investigação. Em terceiro, a afirmação de um ambiente cultural e de um pensamento dominante favorecedores de «saberes práticos», associados ao mercado e ao lucro, e menos ao conhecimento como fator de enriquecimento pessoal. Em quarto, a substituição do paradigma da cultura vinculada à leitura imersiva, pausada e refletida, por um outro, essencialmente visual, efémero e processado em zapping.
Dou maior atenção aos outros dois motivos, em regra menos comentados. Em quinto lugar, a desmotivação crescente da larga maioria dos alunos. Este fator requer a consideração de processos de natureza pessoal, associados à perda de perspetivas profissionais e à desvalorização social de muitos cursos superiores, bem como à desconsideração do saber não meramente técnico e do seu lugar central na definição da formação pessoal e no apoio a um funcionamento equilibrado da sociedade. Além disso, tem vindo a ocorrer no espaço da aula uma espécie de instalação da indiferença e da apatia, em boa parte estimulada pela ausência de causas e de convicções, que sempre estimulam o interesse e a dedicação.
Por fim, em sexto, a formação dos que estão a entrar. É verdade que em algumas áreas existem resultados positivos na aquisição de certos conhecimentos básicos, como o revelam os resultados recentes do PISA, mas a falta de conhecimentos estruturantes do saber e da experiência humana, da chamada «cultura geral», complica a valorização desses números, pois deixa em branco saberes e legados fundamentais. Além disso, os resultados são também condicionados pela lógica quantitativa do sucesso, originando algum facilitismo ou a diminuição da exigência e da responsabilização. Qualquer professor do superior sabe da dificuldade que tem hoje, no que diz respeito à larga maioria dos seus alunos, em adequar os conteúdos ensinados ao grau de preparação prévia de quem o ouve.
Significa isto que eu encare estes 35 anos de ensino universitário como uma descida para o abismo? De modo algum. Desde logo porque sou otimista, conheço muitos alunos excelentes e sei de experiências, inclusive na minha Universidade, que escapam a este panorama deprimente, inevitavelmente transitório. É, no entanto, verdade que, neste domínio, vivemos uma mudança de modelo, habitando um limbo, marcado pela regressão do conhecimento puro e pela hipervalorização de um outro, simplificado e supostamente mais «útil». Um conflito que na área das humanidades, a minha, é particularmente dramático. No entanto, tomar a consciência da sua existência é o primeiro passo para pensar e aplicar soluções capazes de melhorar e de revalorizar o ensino superior. Sem seguir uma lógica da redução ao menor denominador comum.
Publicado em 7/1/2017 no Diário As Beiras (versão ligeiramente revista)