Na década de 1980 costumava passar três ou quatro aulas em cada ano a estudar com os alunos o pensamento político de Nicolau Maquiavel. Parte do meu esforço consistia em contradizer o sentido então vulgarmente atribuído ao adjetivo «maquiavélico» – nessa época ele ainda era de uso corrente –, demonstrando que não fazia justiça aos ideais mais sinceros e fundamentados do diplomata florentino. Na verdade, como modelo do regime perfeito, Maquiavel apontava o exemplo «democrático» da República Romana, e não o poder tirânico centrado na figura do Príncipe, sugerido na obra homónima, escrita em 1513 num contexto particular. No entanto, foi a justificação do segundo aquela que prevaleceu como seu principal legado.
Por isso «maquiavélico» é hoje usado como sinónimo de «astucioso», «dissimulado» ou «perverso», e associado à noção de que os cidadãos podem perfeitamente ser enganados, pois «os fins justificam os meios». Continua a usar-se para depreciar toda a prática política vinculada a propostas sem outra preocupação que não a de vencer a qualquer preço. É também em «maquiavelismo» que pensamos quando assistimos, nas sociedades contemporâneas, à conduta dos partidos e dos políticos que dizem uma coisa numa semana e na seguinte declaram o seu contrário, na expectativa de ferir o adversário e de conquistar ou manter o poder. Sendo uma prática antiga na história humana, foi ampliada pelo recuo das ideologias e constitui hoje um dos fatores de descrédito da democracia.
Observe-se a forma como neste momento, em Portugal, confrontada com o razoável êxito da presente solução governativa – recordo o crescimento da economia de 1,9% no último trimestre de 2016, a diminuição gradual do desemprego e da emigração de jovens quadros, a redução do endividamento de famílias e empresas, a descida do défice para o índice record de 2,1% e a grande amortização da dívida ao FMI – a oposição de direita se esforça não só por «desmenti-lo», como por atacar sob qualquer pretexto, com um apoio acrítico dos média, os seus principais responsáveis. Não está em causa a discordância, pois ela é o coração da democracia, e a atual oposição tem todo o direito a divergir da maioria parlamentar. Mas deve fazê-lo com propostas consistentes, não recorrendo a ataques pessoais, a «informações» forjadas ou a pequenas manobras de diversão.
A ideia de que «os fins justificam os meios» é fonte de arbitrariedade e leva a uma rejeição da política pelos cidadãos, saturados da maledicência e da inversão dos argumentos. Em «Actuelles», Camus esforçou-se por definir como processo de «introdução de uma linguagem moral na política», justamente a submissão desta a propostas públicas coerentes, claras e não contraditórias, evitando dizer uma coisa agora e no dia seguinte o seu oposto. O autor de «O Estrangeiro», que detestava o mesquinho «moralismo» aplicado aos comportamentos privados, elogiava, como fundamento de uma ética democrática, a enunciação de princípios claros, identificáveis e estáveis para a vida pública. A nossa direita ganharia em lê-lo e em deixar Maquiavel em paz. Mas provavelmente não consegue fazê-lo, pois a demagogia está-lhe na massa do sangue.
Publicado em 25/2/2017 no Diário As Beiras