Em entrevista concedida ao Le Monde a propósito das eleições francesas, Jürgen Habermas considerou que a esquerda «deve deixar de ser um espaço para o ressentimento», sendo essa viragem que poderá torná-la «política e humanamente maioritária.» A palavra «ressentimento» toma aqui o seu sentido mais amplo, incorporando pesar, ofensa ou infortúnio. Tal ideia pode ligar-se a uma outra, proposta por Enzo Traverso a propósito daquilo a que chama «melancolia de esquerda». Esta traduziria uma imersão em projeções utópicas vinculadas ao passado, usando-as como alimento da dose de esperança de que precisa para continuar a viver.
Tanto o filósofo alemão como o historiador italiano são homens da esquerda e ambos abordam a dificuldade que esta tantas vezes sente em arquitetar futuros credíveis. Sobretudo futuros imediatos, que mobilizem para a ação e permitam sustentar projetos que não se frustrem logo no primeiro embate com a realidade, como aconteceu recentemente na Grécia com o Syriza. Na paisagem política portuguesa essa dificuldade pode associar-se à atitude geral dos dois partidos parlamentares que, sendo pedra essencial no atual equilíbrio de poder, mas não estando representados no governo, experimentam alguma dificuldade em articular este papel com a sua identidade política, com aquilo que deles espera o seu eleitorado mais fiel e com aquele que é o seu natural desejo de ampliar a influência política.
Dito de outro modo e procurando ser o mais claro possível: Bloco de Esquerda e PCP estão, ainda que cada um da sua forma, a ver-se apertados entre, de um lado, a necessidade imperativa de evitar um eventual regresso da direita ao poder, e a possibilidade de integrarem uma experiência de governo que prolongue e amplie a atual maioria, e, do outro, a necessidade de atender à matriz em larga medida protestativa que tem definido a sua identidade e ajudado a reunir boa parte da sua base social de apoio. Defrontam ainda uma outra dificuldade: o crescimento da influência do atual Partido Socialista, com todas as condições para em próximas eleições obter maioria parlamentar absoluta.
Os problemas dos dois partidos têm a ver, não com a sua legitimidade representativa, que permanece intocável e é indiscutível, mas com a dificuldade de passarem para o outro lado do teatro democrático, que é o do exercício do poder, da capacidade para governar e para mostrar a uma maioria do eleitorado que podem efetivamente ajudar a gerir as suas vidas. Para que o consigam, têm de investir no desenho de soluções políticas que não passem pela conquista do paraíso, mas pela materialização de propostas de governação tão ousadas quanto exequíveis, capazes de definirem o indispensável contrato que requer um eleitorado alargado. Desde logo rejeitando a solução estritamente soberanista, num tempo no qual, diante do novo mundo bipolar que se desenha, se torna necessário reinventar uma efetiva colaboração internacional. Mas também pensando um equilíbrio realista entre o desejável e o possível que mobilize e alargue socialmente, numa dimensão mais transversal, os seus eleitorados.
Num encontro que há dias reuniu em Coimbra dezanove dos fundadores do congresso que em 1973 criou o Partido Socialista, António Costa referiu, com legítimo orgulho, que sob a sua direção foi agora possível «derrubar o último resquício do Muro de Berlim». Não sei se a metáfora é a melhor, pois nem toda a herança do cataclismo político ocorrido em 1989 tem sido benévola, dado o episódio ter aberto também uma gigantesca Caixa de Pandora. Mas é verdade que a materialização da chamada Geringonça criou um espaço para construir um futuro plural capaz, em Portugal, de emancipar a esquerda do recurso ao ressentimento e à melancolia, à atração pelo passado, de que falaram Habermas e Traverso. Assim todas as partes aceitem o desafio.
Publicado em 22/4/2017 no Diário As Beiras