Nós

Nós é um romance distópico, da autoria do escritor russo Yevgeny Zamyatin (1884-1937), lançado em 1924 quando a revolução bolchevique vivia ainda a fase, que se seguiu de imediato ao termo da guerra civil entre vermelhos, brancos e verdes, em que a criatividade literária, artística e científica era estimulada pelo governo revolucionário. Mas a obra de Zamyatin – exilado em 1905 pelo czarismo, e mais tarde por Estaline, que a pedido de Gorky o deixou partir em 1931 para Paris, onde morreria na maior miséria – preludia já, com grande antecedência, distopias críticas dos sistemas assentes no pensamento único, na repressão de toda a divergência e na extensão do autoridade do Estado absolutamente a todas as esferas da vida, como o foram o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1938), e 1984, de George Orwell (1949). Em Nós ficciona-se, de facto, uma sociedade na qual todos vigiam todos, ao ponto de não restar espaço para a liberdade individual e para qualquer forma de crítica ou divergência. O «eu» desaparece então, esmagado pelo coletivo.

Não quero fazer comparações excessivas. Vivemos felizmente numa sociedade democrática, onde, apesar da desigualdade no acesso à informação e ao poder, ninguém coage formalmente alguém a pensar ou a agir como os outros. Mas muitos meios de comunicação social têm vindo a disseminar sinais de um suposto unanimismo que evoca aquele universo opressivo. Num só dia escutei centenas de vezes, na comunicação social, referências a um «nós» que identificava os portugueses, todos eles, com os crentes de uma religião, os adeptos de um clube de futebol ou mesmo aqueles que gostam de uma canção ligeira. É claro que tais conjeturas não passam de generalizações abusivas. Mas são sinais da instalação de uma espécie de norma, tendente a desqualificar quem não pensa igual, não reza igual ou não gosta da mesma coisa, que tem vindo a ganhar curso. O comportamento de algumas pessoas, consciente ou inadvertidamente defensoras da norma, visível em particular nas redes sociais, atesta-o. O totalitarismo, hoje, não se funda necessariamente em regimes de um só partido, apoiados na persuasão ideológica, na censura e na polícia, nem em sistemas sociais que reagem caninamente às imposições dos mercados financeiros: a disseminação mediática da norma também o acalenta. Cuidado com isso.

Ilustração de Clifford Harper

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