Como aceitar cegamente uma teleologia que se apresente como capaz de explicar e determinar o sentido da História, ou mesmo a mera possibilidade de desenhar um programa político de aplicação universal? Quase todos conhecemos o suficiente do percurso da humanidade para saber que aqueles que o tentaram fracassaram rapidamente ou a prazo. Mesmo os que morreram pensando que o haviam conseguido. Tiranos e democratas, honestos e patifes, sábios e ingénuos, todos os que defenderam e procuraram aplicar projetos dessa natureza – invariavelmente apoiados em regimes musculados, em formas de pensamento único e na repressão da divergência – falharam rotundamente. Não sem antes disseminarem, em nome dos princípios salvíficos que proclamaram, sinais de infelicidade, desigualdade e opressão.
Todo o democrata – aquele que defende a participação na coisa pública do maior número possível de cidadãos, sem eliminar a possibilidade e a necessidade do contraditório, e sem criar novos fatores de injustiça -, sabe que não pode conceber-se um modelo de democracia que se apresente como único, perfeito e modelar. Existem, eis uma banalidade que convém sempre lembrar, circunstâncias políticas, sociológicas, culturais, que impõem ou determinam escolhas diferentes, consoante os lugares. Em alguns casos, a instalação da democracia pode mesmo passar por etapas, definidas gradualmente, precisando de ter o cuidado de afastar os seus inimigos declarados para que o caminho não seja invertido. Mas de forma alguma – seja em nome de uma ideologia, de uma religião, ou mesmo de um ideal de sociedade – aqueles que buscam apenas diferentes caminhos.
Neste sentido, não é de esperar para os tempos mais próximos a instalação de um regime plenamente democrático em Estados nos quais a sua existência pode facilmente favorecer um regime pior. Observem-se os exemplos argelino ou egípcio, iraquiano ou líbio, onde a introdução de um ideal de democracia imposto de cima para baixo, seguidor no essencial do modelo parlamentarista nascido na Europa, abriu paradoxalmente caminho aos seus piores inimigos. Porém, já não podemos pensar o mesmo de Estados onde existe um sistema representativo e uma tradição de exercício da liberdade de opinião e organização que, com todos os seus defeitos – apercebemo-nos, cada vez mais, que nas sociedades contemporâneas o papel dos partidos é tão imprescindível quanto insuficiente -, só pode ser um ponto de partida para uma via de aperfeiçoamento, mas não de destruição daquilo que oferece.
Por este motivo, é inaceitável a proposta que o cada vez mais isolado grupo que à volta de Nicolás Maduro está a tentar impor na Venezuela. Note-se que este foi eleito em Março de 2013 com 50,6% dos votos, contra 49,1% do seu principal opositor, e que em Dezembro de 2015 as eleições parlamentares deram 167 lugares à oposição composta por 13 partidos e movimentos, contra 55 do setor que apoia o atual presidente (Partido Comunista de Venezuela, com 2 deputados, Vanguardia Bicentenaria Republicana, com um, e Partido Socialista Unido de Venezuela, com 52). Não deve esquecer-se, naturalmente, que entre os opositores se encontram setores da direita, a par de outros moderados, enquanto a esquerda venezuelana fora dos apoiantes do regime quase se evaporou. Mas o caminho da democracia passa necessariamente pelo respeito da vontade maioritária dos eleitores, não fazendo sentido a estratégia de Maduro para impor uma constituição que afaste a maioria dos partidos do cenário democrático e o perpetue no poder. Aliás, mesmo setores que colaboraram na elaboração da Constituição venezuelana no tempo de Hugo Chávez, estão a opor-se à sua manobra.
Sabe-se que muitos defensores de soluções monopartidárias, adeptas do pensamento único, têm vindo a sair à rua, na Venezuela ou noutros lugares do mundo – em Portugal também, há dias eram cerca de duzentos em Lisboa – para defender a proposta de Maduro, arvorando-o, para justificarem a escolha, em arauto da luta anti-imperialista. Estes, jamais aceitarão que a democracia, sempre imperfeita, é um valor absoluto, não condicionada por um objetivo preciso. Não se espere que mudem de ideias. Mas como podem outros apoiar um regime político que jamais aceitariam para a sua pátria? Um regime assente em vagos princípios de democracia direta que excluem largos setores da sociedade. Deveriam pensar neste princípio social da equidade: não queiras para os outros aquilo que jamais aceitarias para ti.