Começo por um episódio ocorrido há poucos dias durante um debate televisivo. A dada altura, um dos participantes afirmou: «Isto [um aspeto do tema em debate] pode ser visto como branco, azul, vermelho, amarelo, verde ou preto». Comentário do pivô: «Portanto, pode ser branco ou preto». A réplica do comentador: «Essa é uma ideia simplista». E de novo o pivô: «Devemos dar ideias simplistas às pessoas». O episódio pode parecer inventado, mas não foi: o diálogo (mais vírgula, menos vírgula) decorreu desta forma. Infelizmente, mostra uma tendência, que não nasceu hoje, mas tem vindo a acentuar-se, segundo a qual tudo deve ser reduzido, «para que as pessoas entendam», ao menor denominador comum.
Ela não ocorre apenas na televisão ou nos jornais. O discurso político tem vindo a ser contaminado por este processo, e até no ensino, incluindo o universitário, se tem vindo a propagar. Grande parte da comunicação social tem fortes responsabilidades, a partir do momento em que passou a abdicar da sua dimensão pedagógica, concentrando-se no que considera ser mais facilmente consumido, identificado com o breve, o simples, o que apela mais aos instintos que à inteligência. Boa parte do discurso político, em particular o populista, mas não apenas ele, tem vindo a repercutir a mesma ideia, apelando à eficácia da mensagem imediata, ainda que esta possa subverter uma mensagem mais completa e fundamentada. Nas universidades – sobretudo após a implementação do processo de Bolonha, que favorece a aquisição de competências funcionais em desfavor do conhecimento puro – tem vindo a ocorrer o mesmo, ao ponto de por vezes se considerarem abordagens mais dinâmicas como «pouco pedagógicas».
Certa vez, um amigo perguntou-me a razão pela qual eu não mantinha grandes relações de trabalho com certa pessoa, com que partilhava alguns interesses e até me dava cordialmente. A minha resposta foi intuitiva, mas ainda a considero correta: «É que ele tende sempre a simplificar o complexo, enquanto eu prefiro conviver com a complexidade». Convém, porém, lembrar que complexo não é sinónimo de complicado. É claro que no processo de comunicação, o nosso raciocínio deve desenvolver-se de forma clara, em particular quando precisa ser conciso para ser transmitido. Precisamos evitar que seja confuso, sabendo descrever a complexidade de forma simples. Na televisão, na tribuna, numa aula, quem conhece o caráter dinâmico e múltiplo dos assuntos que aborda deve apresentá-los de forma compreensível, mas sem omitir a multiplicidade, enriquecendo-se nessa transmissão a perspetiva e o conhecimento de quem recebe.
Nada é apenas a preto e branco, nem sequer apenas em tons de cinzento. A realidade é multicolor e é assim que deve ser observada, interpretada, explicada. De outra forma, aquilo que se faz é a reduzir o espectro do conhecimento, ou a pluralidade da informação, alimentando ideias imóveis, fechadas sobre si e distantes de uma dimensão crítica, que são o alimento de todas as formas de incompreensão e de fanatismo. Em «Queridos Fanáticos» (2017), livro de ensaios do escritor israelita Amos Oz, combatente de longa data por uma solução pacífica e negociada para a Palestina, considera-se o fanatismo como uma forma de desprezo pelo outro – aquele que não é como nós – fundada essencialmente na ignorância que temos dele. Traduzindo: uma forma de desprezo baseada na simplificação da complexidade de um mundo reduzido a um estreito núcleo de fixos estereótipos que excluem aquilo que é móvel e diverso.
Voltando ao início e à reveladora troca de palavras no tal debate num canal de televisão: é fácil, na avaliação da realidade, confundir-se a árvore com a floresta, dependendo sempre a avaliação do lugar do observador e do seu grau de conhecimento. Por isso, quem tem a possibilidade de conhecer mais, possuindo meios para comunicar com impacto público, tem o dever de esclarecer, de desenvolver apreciações completas, não de «dar ideias simplistas às pessoas», anestesiando o sentido crítico dos cidadãos e fazendo deles tontos, prontos a seguir qualquer canto da sereia.
Crónica publicada no Diário As Beiras de 19/5/2018.