Sempre gostei de futebol, mas jamais da «clubite», que se compraz mais com as derrotas do adversário que com as vitórias próprias, ou do fanatismo, que tudo transforma em território de incompreensão e ódio. Bill Shankly, treinador do Liverpool entre 1959 e 1974, afirmou certa vez que «o futebol não é uma questão de vida ou de morte, mas algo bem mais importante do que isso», e eu concordo com ele. É, ou pode ser, uma paixão ou um interesse que dá algum sal à vida, como muitas outras pequenas coisas. Foi o que aprendi em criança, enquanto esfolava os joelhos e os sapatos na «Rua da Manha», a pequena calçada escondida do olhar vigilante das mães, onde, por vezes com bola de trapo ou papel atado com um cordel, jogávamos pelo prazer simples de o fazer. A frase de Camus sobre o futebol como escola de vontade e de fraternidade faz todo o sentido quando recordo aqueles jogos semiclandestinos de muda aos cinco e acaba aos dez.
Ser adepto do Sporting fazia parte desse interesse. Passei a sê-lo precisamente quando o seu principal rival dominava o futebol nacional. Talvez tenha sido pela tendência congénita para contrariar os mais fortes, associada à vontade de seguir um caminho próprio, dado toda a minha família e quase todos os conterrâneos serem adeptos do Benfica, sendo até o clube da terra uma das suas primeiras sucursais. Tratou-se de um impulso, inexplicável como todos os impulsos, cujos efeitos me passaram a acompanhar. Apesar de profundamente crítico dos vícios do futebol, nele construí e mantive um espaço privado de prazer, por vezes de sofrimento, associado ao dia a dia das vitórias e das derrotas, dos sonhos e impasses, do meu clube de sempre.
Sendo, pois, adepto do Sporting Clube de Portugal, reconhecido como «instituição de utilidade pública», é natural que sinta com particular desgosto o que está a acontecer ao clube. É tudo demasiado mau: a destruição de um espaço de afinidades, a perversão da legalidade estatutária, a violência de adeptos contra atletas e contra outros adeptos, a desvalorização e a compreensível fuga dos jogadores, o desmantelamento de um espaço de convívio de adeptos e famílias, tudo associado à linguagem descabelada, à mitomania e à mania de perseguição de uma figura colérica responsável pelo extremar das posições. Deixando uma profunda tristeza e um sentimento de perda, um desgosto, entre tantas pessoas que dedicaram momentos da sua vida e dos seus pequenos devaneios a esse espaço de afetividades.
É claro que a culpa disto não morre solteira e não é exclusiva de um clube. E também só por ingenuidade se pode pensar que se trata de um problema apenas do futebol. Existem sombras que se movem neste processo que já atingiram outros clubes – com diferenças de grau, mas não de natureza – e que estão muito para lá de um problema estritamente desportivo. Negócios obscuros que envolvem muito dinheiro e interesses, dirigentes sem qualificações técnicas ou humanas, claques violentas penetradas por marginais e bandos de extrema-direita, promiscuidade com alguma política local, para além do uso e abuso que a comunicação social faz de tudo isto para gerar audiências, contribuíram em muito para se chegar a este ponto, com o país inteiro, há largas semanas, refém dos impulsos irracionais de um cidadão em estado de negação, mas rodeado de câmaras e microfones.
Por isso, algo terá de mudar. Não apenas para que um grande clube de futebol se salve, mas para evitar réplicas que podem suceder em outros, e para que um espaço social de entretenimento e emoções partilhadas não seja destruído. Federação e Liga de Clubes não podem fazer orelhas surdas, a justiça e os tribunais têm de estar atentos e ser céleres, e o próprio governo não pode fechar os olhos a algo que afeta o bem-estar público e suscita hipóteses de violência disseminada e galopante. Ao falar das condições de emergência nas sociedades contemporâneas de formas disseminadas de conflito civil, Hans M. Enzensberger relembra episódios de destruição que exprimem «a raiva pelas coisas intactas, o ódio a tudo aquilo que funciona», e isto parece estar também a acontecer com o nosso futebol. Matando-o como espaço de prazer e paixão, para a qual nasceu há bem mais de um século. Não podemos deixar que tal aconteça.
Fotografia de Jessica Hilltout
Crónica publicada no Diário As Beiras de 16/6/2018. Versão ligeiramente revista e ampliada.