O recente episódio mediático ocorrido com a viagem de António Costa a Angola, quando uma evidente falha dos serviços de protocolo fez com que a indumentária mais informal do primeiro-ministro usada à chegada a Luanda se transformasse, na imprensa e nas redes sociais, em arma de arremesso contra si e o seu governo, conduziu-me até ao passado. Ao encontro de uma das vertentes dos preconceitos atávicos contra esquerda expressos por setores conservadores. Ao mesmo tempo, revisitei fantasmas a habitar ainda velhos armários.
Entre 1971 e 1977, ano em que dela me afastei por razões de ordem moral – as divergências políticas chegariam mais tarde –, mantive uma militância ativa na esquerda à esquerda do PCP. Na época, os setores conservadores gostavam de associar uma atitude social própria de parte dos que se afastavam da velha ordem a determinadas formas do estar e do parecer. Estas traduzir-se-iam em escolhas relacionadas com o estilo de vida, a etiqueta, o vestuário ou a higiene, que tais setores apontavam na tentativa de denegrir os que delas participavam e os ideais que partilhavam. Ao mesmo tempo, um certo senso comum, apoiado numa ética elitista que chegava à classe média e tinha em boa medida uma raiz geracional, exibida principalmente pelos mais velhos, desqualificava muitos deles como pessoas sem maneiras, que vestiam de forma descuidada e não gostavam especialmente de tomar banho.
Há que reconhecer que essa imagem não era, num certo sentido, de todo desprovida de verdade. Naquela época, num Portugal fechado ao exterior e à mudança – realidades que neste plano só começaram a alterar-se uma década após o 25 de Abril –, a recusa do regime autoritário e da desigualdade social, e também a rejeição do conservadorismo social, de extração salazarista e católica, impunham a bastantes militantes da esquerda uma atitude de corte, por vezes radical, com os códigos conviviais dominantes. Ao mesmo tempo, o alastramento de uma conceção algo fantasiada da identidade da classe operária e do povo fazia com que, sobretudo entre alguns dos que tinham uma extração de classe média, se definisse uma espécie de remorso por não integrarem a «classe certa». Estudantes, artistas, intelectuais, profissionais liberais, jovens idealistas, procuravam então, através de sinais exteriores algo artificiais, diluir o que consideravam representar défice de cidadania. Neste processo, a chegada da informal cultura juvenil internacional dos anos sessenta teve também grande influência.
Por isso, é parcialmente verdadeira a ideia que se refere no primeiro parágrafo. Os exemplos são muitos e posso dizer que passei, não apenas como espetador, por muitos deles: a rejeição do uso da gravata ou de cores sóbrias, cabelo e barba compridos e revoltos, a recusa de qualquer maquilhagem, o esquivar-se a práticas de etiqueta social vistas como sinais de submissão ao sistema, o furtar-se a hábitos de higiene considerados «marca de classe», o trajar de um modo mais descuidado, a atração pela simplicidade que se cria ser próprio de uma atitude democrática ou libertária, definiam esse padrão de demanda da diferença. A calça de ganga constituía, para rapazes e raparigas, o sinal maior dessa condição social igualitária que perseguiam e que desejavam para o país que habitavam.
Alguns, muitos, mantiveram essa escolha ao longo da vida, como padrão de gosto que adotaram para si. Ainda hoje os encontro, velhos amigos e camaradas que parecem os mesmos, apenas com mais algum peso e uns quantos cabelos brancos. Outros, porém, talvez a maioria, foram-se adaptando à mudança da realidade política e do ambiente cultural, preservando, desse passado, apenas a vertente prática mais informal e a sensibilidade «antidisciplinar» que aquela época legou aos últimos cinquenta anos da nossa existência coletiva. António Costa, que nem sequer é dessa geração, poderá ter herdado – estranho seria até que tal não acontecesse, dada a origem familiar e área política – os últimos sopros daquele tempo. Mas já não preenche as condições para aparecer como exemplo dessa caricatura da esquerda que os preconceituosos conservadores ainda têm na cabeça. Os tempos mudaram, e com eles todos nós.
Fotografia: Bastian Kienitz