Em Homens em Tempos Sombrios, de 1968, Hannah Arendt juntou dez pequenos ensaios sobre europeus de gerações diferentes que viveram um tempo, a primeira metade do século passado, poderosamente marcado por um trágico conjunto de sucessivas «catástrofes políticas e calamidades morais». Algumas apresentam pontos de contacto com a realidade que estamos a viver, onde reaparecem os fatores de desagregação, incompreensão e ódio que naquela época impuseram perseguições políticas e étnicas, legitimaram as piores ditaduras, acentuaram as formas de desigualdade e provocaram as guerras mais brutais.
Quando vemos de novo as sombras do racismo, da xenofobia, da exclusão das minorias, do nacionalismo, do autoritarismo sob a máscara do populismo, de intolerância em relação ao outro e ao diferente, ou mesmo as ameaças à paz feitas de um modo que ainda há duas décadas julgávamos irrepetível, não é difícil encontrar na sua origem um problema de incompreensão e ignorância. Desvaloriza-se publicamente o conhecimento não lucrativo – a história, o pensamento filosófico, a literatura, as artes, a ciência pura –, que ainda não há muitos anos representavam para os seus cultores um inquestionável fator de prestígio social, e que davam consistência humana a muitos decisores. Em contrapartida, enuncia-se como desejável a gestão puramente material, o domínio técnico associado a competências muito específicas, estimulando-se, no discurso político dominante e mesmo nos programas educativos, a competição e o individualismo.
Afirma-se deste modo uma forte perda de lastro do património plural da humanidade, incluindo-se nela os legados da memória e do conhecimento acumulado, bem como um sentido agudo do social e de reconhecimento do diferente, disseminando-se uma compreensão simplificada do mundo, pautada pelo maniqueísmo, pelo culto do imediato e pela culpabilização. Sem rasgo, sem perspetiva, sem outro interesse que não a reação automática, tantas vezes primitiva e violenta, aos problemas aparentemente mais prementes. Como terrível resultado deste processo, emergem preocupantes sinais de um retorno coletivo ao estado de barbárie, agora projetado a uma escala global. A ignorância do humano impõe esse estado de coisas: sem ângulo de visão, apenas se reage ao que está mesmo debaixo do nosso nariz, aceitando o triunfo dos brutos que prometem tudo resolver.
No entanto, como insiste Arendt no livro mencionado no início, «até nos tempos mais sombrios temos o direito de esperar ver alguma luz», chegando ela, desde logo, «da chama incerta, vacilante, e muitas vezes ténue, que alguns homens e mulheres conseguem alimentar em quase todas as circunstâncias e projetar em todo o tempo que lhes foi dado viver neste mundo». Por muito fantasioso que possa parecer, o combate à ignorância que espalha a incompreensão e a violência será levado a cabo, em primeiro lugar, por quem deles tenha perceção. Será sempre a sua consciência e tenacidade, a sua luta pelo conhecimento e pela liberdade, a sua inteligência do coletivo e do solidário, o seu ativismo consciente e sensível – isto é, o fator humano –, a lançar a luz sobre os novos tempos sombrios. Não se trata de uma quimera, de um delírio quixotesco destinado à derrota, pois já aconteceu inúmeras vezes. Em tempos e lugares em que as trevas foram derrotadas.
Rui Bebiano
Publicado originalmente no Diário As Beiras de 17/11/2018. Versão ligeiramente revista.