A propósito do terceiro aniversário do atual governo, chegou-me um desafio. Pretendia uma jornalista que identificasse aquilo que da sua experiência irá «ficar para a História». Dedicando parte do meu trabalho à história do presente – isto é, a pôr em perspetiva temporal temas contemporâneos –, não sou partidário da «história imediata», uma vez que esta exclui um padrão de crítica que só o distanciamento temporal possibilita. Por outro lado, sou incapaz de profetizar o modo como cidadãos do futuro olharão este presente. Não deixei, porém, de aceitar o desafio, adiantando cinco dos tópicos que uma observação posterior poderá ter em conta.
Em primeiro lugar, esta foi, na nossa II República, a primeira experiência de um governo apoiado por uma maioria parlamentar construída sem o partido ou aliança mais votados, tal como com naturalidade se pratica há décadas em outras democracias (como sabe, por exemplo, quem acompanhou a série televisiva dinamarquesa Borgen). Este mecanismo criou uma nova solução democrática, anteriormente excluída entre nós, que assenta mais em entendimentos legislativos, e no estabelecimento de consensos interpartidários anunciados publicamente, que em meras combinações de gabinete geradas longe dos olhares dos eleitores. Esta nova possibilidade alterou os cenários do jogo político, enriquecendo-o.
Em segundo lugar, o acordo parlamentar encontrado permitiu uma reformulação da esquerda política. Por um lado, desbloqueou algumas das desconfianças atávicas entre as suas componentes que vinham desde a resistência ao Estado Novo e do período revolucionário. Por outro, suscitou a revisão das dinâmicas internas dentro de cada um dos três principais partidos parlamentares deste campo político, introduzindo nas suas práticas uma dimensão de moderação e de negociação de consensos que desenvolveu também um novo cenário. Está ainda por observar e compreender em que medida este processo irá influenciar transformações no interior de cada um desses partidos, mas elas não deixarão de ocorrer.
Em terceiro lugar, a viragem de há três anos produziu um sopro dessa esperança no futuro que o governo anterior fizera perder. O estado de depressão coletiva imposto pela ideia de que «não havia alternativa» perante a ditadura dos mercados e a austeridade sem limites, que acompanhou o quadro social do país durante os quatro anos do governo PSD-CDS, deu lugar a uma alteração de horizontes e de perspetivas que foi vital para o regresso de alguma confiança dos cidadãos. Importante para esta mudança foi também a alteração na política externa, uma vez que Portugal deixou de aceitar sem discussão e de forma servil todas as imposições das agências de financiamento e das autoridades europeias, com algum reforço de uma soberania que parecia perdida.
Em quarto lugar, a relação de forças instalada também forçou a direita política a uma reformulação. Os seus partidos parlamentares foram forçados a reconsiderar algumas das suas escolhas do tempo em que foram governo, parecendo emergir como paladinos de algumas reivindicações laborais. Por sua vez, apesar de ainda não possuir força eleitoral, a suposta «ameaça da esquerda» impôs a saída da obscuridade de setores obscurantistas que se aproximam da extrema-direita e que poderão a curto prazo ampliar o seu peso. Basta observar alguns artigos de opinião que no conteúdo tendem a ultrapassar pela direita o PSD e o CDS.
Em quinto e último lugar, poderá mais tarde vir a ser recordada a forma como a posição de Portugal perante a Europa permaneceu durante esta experiência política como um problema por resolver. Neste campo, os três partidos que principalmente sustentam a atual solução têm definido posições bastante diversas, sendo este, por isso, uma espécie de tema-tabu, raramente abordado de forma frontal na perspetiva de poder suscitar perigosas clivagens, sempre de evitar. Acredito, no entanto, que ele regressará durante a campanha eleitoral para as próximas legislativas. E a médio prazo gerará escolhas que poderão produzir clivagens. Sendo a força política que nesta área tem mantido menor dimensão de certezas, a evolução do Bloco de Esquerda será decisiva.
Não encontrei fatores substantivos de natureza social ou económica – apesar de neste campo também terem ocorrido importantes alterações – em condições de nesta altura me deixarem traçar uma nítida linha divisória, hipoteticamente situada no futuro, entre o que foi o antes e será o após a presente solução. Mas os historiadores saberão sempre pensar a linha do tempo em perspetiva.
Fotografia: Átrio do Palácio de São Bento, Eduardo Gageiro, 1999
Publicado originalmente no Diário As Beiras de 1/12/2018