Terminei neste Natal a leitura de um livro comprado há dez anos. A demora não ficou a dever-se a outras prioridades – leio sempre três ou quatro livros em simultâneo e não teria sido difícil juntá-lo a uma das séries –, mas ao facto de o seu conteúdo me ter perturbado tanto quanto me interessou, o que fez protelar algumas vezes a passagem ao capítulo seguinte. Refiro-me a Intelectuais, do historiador britânico Paul Johnson, obra escrita com um propósito desassossegador: observar um conjunto de poetas, escritores e pensadores cuja obra pública integrou uma vontade declarada de sugerir caminhos melhores e mais justos para o trajeto da humanidade, ao mesmo tempo que a sua vida ia contrariando, por vezes de forma extrema, as belas ideias e os grandes propósitos que preconizavam.
Johnson dedicou-se a demolir, aos olhos dos leitores, algumas lendas construídas à volta dos autores que aborda, sugeridas em parte por uma observação dos seus escritos que não teve em conta as escolhas objetivas da sua vida pessoal. Um pouco como na sentença que sugere «olha para o que eu digo, mas não para o que faço». Já conhecia alguns dos episódios evocados no livro, mas nunca estes me haviam sido revelados de forma tão clara e encadeada em modelos de comportamento, abalando, admito, o modo como passei a olhar Rousseau, Shelley, Karl Marx, Ibsen, Tolstoi, Hemingway, Brecht, Bertrand Russell, Sartre, Lilian Hellman, Norman Mailer e alguns outros. E nem o facto de conhecer as tendências politicamente conservadoras do autor, e os preconceitos de abordagem que em alguns dos casos elas determinaram, reduziu o efeito de choque perante tantos sinais objetivos de traição, inveja, perfídia, vaidade, escroqueria, deslealdade ou desonestidade, tanto intelectual quanto pessoal.
Não que fosse novidade – para mim, bem como para a generalidade das pessoas não totalmente crédulas ou ingénuas – a distância que tantas vezes vai entre a imagem pública que muitos notáveis procuram projetar de si e a realidade das escolhas e dos gestos que foram praticando em vida. Todos conhecemos pessoas, vivas ou mortas, com uma obra pública notável, amplamente reconhecida, e com uma vida triste ou mesmo lamentável. Podem mesmo incluir-se na longa lista grandes nomes dos combates pela liberdade e pela democracia que pouco ficaram a dever à honestidade pessoal e se comportaram muitas vezes como tiranos junto da família chegada, amantes, colegas, alunos, admiradores, correligionários, ou, pior ainda, pessoas dependentes. Cheios de amor pela distante humanidade, é certo, mas indiferentes aos mais próximos.
Na realidade, a adequação da vida pessoal aos grandes princípios proclamados de forma pública exige esforço de coerência e vontade, comportando ainda um elevado número de riscos. Fazê-los corresponder às relações quotidianas com os outros, transformar a ética individual que se exalta num código de conduta, não é tarefa fácil, requerendo um constante esforço. E muitos dos que o procuraram fazer pagaram caro por isso, dado ser frequentemente mais fácil exibir ou esconder diferentes rostos que expor de forma pública um único, reconhecível em todos os momentos e aplicável a todas as relações humanas. Albert Camus, um dos que sempre procurou fazê-lo, considerou a moral individual – não a coletiva, que julgava um fator de opressão – como «uma teoria da ação», como uma forma de compromisso, capaz de definir alguns deveres de conduta a todo aquele que pretender viver coerentemente e em paz com a sua consciência.
Um comentário final. Com esta crónica não pretendo contribuir para arruinar a reputação dos autores cuja vida pessoal e social foi revolvida no livro de Paul Johnson publicado há já três décadas. Pessoalmente, continuo a admirar a obra imortal de quase todos eles, em particular as de Rousseau, Marx e Sartre, mas depois desta experiência de leitura admito que deixei de os encarar da mesma forma. Porque falíveis, talvez na minha consciência se tenham até tornado mais humanos. Em contrapartida, perderam o estatuto de semideuses. Um ou outro deixou de me interessar.
Fotografia: Outside, por Iwan Puken.
Publicado originalmente no Diário As Beiras de 29/12/2018