Depara-se por todo o lado com um regresso vigoroso da extrema-direita como área política e do autoritarismo como modelo de governação. A partir dos anos oitenta, quando os ideais democráticos emergentes nas duas décadas do pós-guerra começaram a recuar, tornou-se percetível que a serpente fascista não morrera. Ao invés, ela estava a crescer, sobretudo em ambientes marcados pela crise económica, pela desigualdade e pelo conflito social. Nos últimos anos, este crescimento tornou-se claro. Encontramo-la em práticas de governo ou propostas de movimentos com hipóteses de o vir a ser. Nos Estados Unidos, Brasil, Filipinas, Hungria, Polónia, Rússia ou Itália, ela chegou já ao poder. Em França, na Alemanha, na Bulgária, na Finlândia ou em Espanha, configura-se como alternativa com hipóteses de a ele chegar. Em Portugal já quase não existia, mas está a ser artificialmente reinventada.
Não falamos de uma extrema-direita semelhante àquela que se afirmou entre as décadas de vinte e quarenta do século passado. O mundo mudou e existem diferenças consideráveis, tanto nas propostas quanto nos métodos. A maior delas, sem dúvida, é que enquanto nas experiências anteriores se ergueu abertamente contra a democracia, nas de hoje procura chegar ao poder usando os meios que a democracia faculta, e falando até em seu nome. A barbárie fascista reemerge por todo o lado como forma de normalidade política.
Os métodos são diversos: explora as crises económicas e a desigualdade social, invoca o terrorismo e a criminalidade, amplia e distorce as consequências dos movimentos migratórios ou de refugiados, ressuscita os fantasmas do racismo e da xenofobia, usa os preconceitos contra a igualdade de género e os direitos das minorias, serve-se das tradições religiosas ou locais contra todas as tentativas de superar práticas sociais obsoletas. Já ideologia, não tem: apenas um vago nacionalismo, uma proposta de regresso a uma ordem hierárquica rígida e a rejeição de todas as formas de democracia, de igualdade e de diversidade social. Tudo envolvido numa linguagem populista, que ignora as lições da história e recorre demagogicamente a algumas reivindicações justas e até a setores sociais excluídos, apresentando-se mesmo como a sua voz.
Neste processo tem particular importância o papel das redes sociais e dos media. As primeiras dão voz a quem a não tinha, é verdade, mas têm possibilitado ao mesmo tempo a disseminação de notícias falsas, bem como uma manipulação da informação que usa o logro da proximidade. Já os meios de comunicação social – não todos, naturalmente, mas uma parte significativa deles – fazem-no de uma forma mais coerente e organizada. Têm sido precisamente estes a conferir a este setor a projeção que há poucos anos não tinha, puxando-o para as primeiras páginas e dando destaque às suas iniciativas e exigências.
Entre nós, esta situação tem contornos particulares. As organizações da extrema-direita são diminutas e em parte ligadas ao mundo do crime, sendo o nosso país, neste domínio, um oásis na Europa. Mas vemo-las agora amplificadas na forma como jornais e canais de televisão lhes dão fôlego. Através de notícias desproporcionadas sobre certos movimentos (veja-se o caso dos «coletes amarelos à portuguesa»), de dados falsos sobre insegurança (quando Portugal é um dos países mais seguros do mundo), de agudização artificial de conflitos sociais que podem ser negociados (o caso da greve dos enfermeiros é o mais notório), de branqueamento e normalização do ideário fascista (ao conceder voz pública a fascistas notórios). Através também da proliferação de realces noticiosos e de colunas de opinião onde o país, apesar da recuperação recente, é apresentado como se estivesse à beira de uma catástrofe e a carecer de soluções de natureza autoritária.
Tudo isto tem suscitado um estado de alarmismo que pode favorecer condições para a emergência de movimentos de pendor autoritário e violento, ajudando a criar e a desenvolver uma extrema-direita que até agora praticamente não existiu. Por isso, na defesa da liberdade, as instituições da democracia e os seus partidos não podem dormir, atuando nesse sentido e responsabilizando, se necessário criminalmente, quem trabalha para disseminar a mentira e o ódio, na tentativa de legitimar soluções fundadas na intolerância e na violência. Em Portugal, a democracia não pode deixar os seus piores inimigos de mãos livres.
Fotografia: Par de botas de combate. Autor não identificado.
Publicado originalmente no Diário As Beiras de 12/1/2019