Os acontecimentos no Bairro da Jamaica, no Seixal, trouxeram de novo para primeiro plano o problema do racismo em Portugal. O mito da sua inexistência entre nós segue-se aos outros mitos do país multirracial e do colonialismo «suave», tapando uma vez mais o sol com a peneira dos «brandos costumes». Mas, como é sabido, peneira não tapa luz e por cá o racismo existe de facto. Claramente expresso e assumido pode parecer raro, confinado aos pequenos grupos de extrema-direita, a franjas dos adeptos de futebol e aos últimos ressabiados da descolonização, mas na realidade é uma constante, vindo ao de cima em muitas circunstâncias e lugares. Por vezes, apenas num olhar, outras em atitudes de condescendência, aqui e ali em palavras jocosas ou em inconfessadas formas de segregação. No caso agora ocorrido, traduzido de novo numa ação policial brutal e totalmente inadmissível.
O racismo existe em Portugal, sim, existe, e por isso o antirracismo é inevitável e necessário. Este não nasce entre militantes à procura de causas, mas no meio de quem em primeiro lugar o sente na pele. E também entre quem, por escolha, assume que esta é uma nódoa inaceitável em qualquer sociedade que se pretenda justa, igualitária e democrática. É preciso, no entanto, reconhecer que o antirracismo não se afirma atirando flores sobre os racistas, tal como a denúncia dos gestos e palavras que o traduzem não se faz encolhendo os ombros ou pondo paninhos quentes sobre episódios graves apontados como passageiros. Ele representa um combate muito sério e muito necessário, que, como o do antifascismo, não se faz contra moinhos imaginários, mas contra pessoas com rosto ou contra atitudes criminosas que devem ser isoladas e travadas.
Por outro lado, de modo algum pode produzir o efeito contrário. No caso agora sucedido, que é aliás uma repetição de outros análogos, a ação dos polícias envolvidos não pode deixar de ser condenada e, mais que isso, sendo de natureza criminosa, não pode ficar sem pesado castigo. Mas é absolutamente injusta, para além de contraproducente, a generalização a partir deste caso – existem muitos outros casos, mas nem que acontecesse apenas este seria sempre inaceitável –, como se a instituição policial fosse em si um ninho de agressivos racistas, coisa que felizmente já não é, embora inclua alguns nas suas fileiras. Ou como se todos os cidadãos de pele branca que não sejam combatentes antirracistas apenas estejam à espera de oportunidade para insultar, agredir ou segregar.
Para ser eficaz, o antirracismo tem de chegar às pessoas comuns, aos cidadãos decentes e com sentido de justiça, fechados no seu território cultural e que não lidam diretamente com o problema, mas podem ajudar a resolvê-lo integrando a consciência pública de que o racismo é intolerável. Tem para nisso de fazer pedagogia, mudar mentalidades, superar incompreensões, mostrar o valor da diferença. E também de exigir com firmeza dos poderes legislação que castigue quem contra esta atentar. Inversamente, se se generalizarem culpas a partir de casos com impacto mediático, divide-se a sociedade em «bons» e «maus», empurrando para o lado dos segundos muitas pessoas que apenas reproduzem preconceitos instalados por vezes há gerações.
O combate contra o racismo é urgentíssimo, exige tenacidade e não é nada fácil, mas requer também lucidez, paciência e a capacidade para erguer pontes, evitando as trincheiras. Não será apenas aos gritos – compreensíveis em momentos particulares de indignação, como agora no Jamaica – que obterá o apoio cúmplice da maioria da população. Uma campanha antirracista a decorrer em França proclama: «O racismo é sistemático, a solução é coletiva». É isso mesmo.
Versão ligeiramente revista do artigo publicado no Diário As Beiras de 9/2/2019