Tornou-se um hábito, entre a esquerda exterior ao PCP, olhar várias das suas posições sobre política internacional com alguma relutância, mas também com um encolher de ombros. De alguma forma compreendo a escolha e muitas vezes faço o mesmo: por um lado, porque as circunstâncias políticas associadas à experiência da «geringonça» requerem alguma contenção em tudo aquilo que possa dividir ou criar animosidade (como se sabe, a menor crítica de fundo é sempre vista daquele lado como «anticomunismo»); por outro, porque apesar das divergências, a história do PCP, a sua importância para a democracia, a generosidade de muitos dos seus militantes, determinam a contenção possível. Um pouco como quando temos divergências em família, por vezes graves, não sendo todavia por isso que cortamos com ela. E desta forma, a muitos episódios lamentáveis se responde relevando-os.
Todavia, a posição sobre a Coreia do Norte não é irrelevante ou desculpável, servindo de facto para «dizer o indizível». Foi agora reforçada com declarações de Jerónimo de Sousa: «Não há democracia na Coreia do Norte? “É uma opinião”» (Diário de Notícias), ou «A Coreia do Norte é democrática? (…) “O que é uma democracia?”» (Público). E mesmo quando reconhece existirem discordâncias, estas jamais são especificadas. Não me parece difícil entender esta posição: em primeiro lugar, pela lógica do inimigo principal como os EUA, sendo o enfraquecimento de uma «força anti-imperialista» prejudicial no seu enfrentamento; em segundo lugar, porque a República Popular Democrática da Coreia do Norte é vista como um dos derradeiros bastiões do «socialismo» pós-1989; em terceiro, porque o PCP nunca definiu bem a sua posição sobre a democracia e a liberdade no sistema político pelo qual se bate, que depende geralmente de circunstâncias táticas, capazes de assumir posições justas (como em Portugal) ou de determinar apoios a ditaduras «boas» ou «úteis».
A realidade é esta: a Coreia do Norte é o país mais fechado do mundo, um daqueles com rendimento per capita mais baixo, investe no poderio militar quando existem fenómenos endémicos de fome, tem uma polícia política feroz e um sistema de campos semelhante ao antigo Gulag soviético (estimativa atual: 150.000 prisioneiros políticos), define um sistema de propaganda destinado a robotizar os cidadãos, impede a menor expressão de divergência, e, o pior de tudo, vive de um sistema ultra-autoritário, centrado num culto da personalidade paranóico, impondo internamente a imagem de um paraíso onde a «igualdade» é de facto medida pelo estado geral de miséria, uniformização, fantasmagoria, escravatura e repressão em que vivem todos os que não fazem parte do partido ou dos órgãos da administração. Os testemunhos de viajantes ou de cidadãos que conseguem escapar, alguns traduzidos para português, não desenham outro cenário. Não são «uma opinião».
Rui Bebiano
Fotografia: Reuters