Temos sempre a história para nos ajudar a conhecer o passado e a compreender o presente, mas a memória pessoal pode dar também uma boa ajuda. Quem tenha vivido os anos finais do Estado Novo já com alguma consciência política – felizmente ainda existem muitas pessoas nestas condições e capazes de oferecer o seu testemunho – sabe que nessa altura, em particular a partir do «período marcelista» de 1968-74, eram já pouquíssimas as pessoas com voz pública que fora dos organismos e dos círculos do poder assumiam claramente a defesa do regime. Muitas calavam-se por vergonha ou desmotivação, mas muitas também, em número cada vez maior a cada dia que passava, porque eram mesmo contra ele e desejavam que ruísse o mais depressa possível.
Logo no dia 25 de Abril de 1974, esses poucos que eram declarados defensores do Estado Novo perderam a voz e desapareceram como por um passe de mágica. Diz-se por vezes, provavelmente apenas com um pouco de exagero, que nas manifestações do primeiro 1º de Maio em liberdade não celebraram na rua a chegada da democracia só mesmo os membros do governo tombado, os agentes e informadores da PIDE, alguns salazaristas mais renitentes, os doentes acamados e os moribundos. De seguida, durante o biénio revolucionário de 1974-75, os defensores do regime desapareceram de todo: alguns emigraram para o Brasil ou para a África do Sul, outros travestiram-se de «democratas» e a maioria passou a andar calada, aceitando com amargura a derrota.
Mesmo após aquele período mais tenso e de ardorosos combates, quando a democracia representativa foi institucionalizada com a aprovação da Constituição de 1976 e foram legalizados os primeiros partidos conotados com a direita política, os fascistas inveterados, isolados ou reunidos em pequenas organizações, algumas de natureza terrorista, permaneceram ausentes da vida pública. Continuavam a existir, é certo, mas tinham medo de se assumir como tal, em parte porque a nova opinião pública democrática e a comunicação social lhes eram completamente desfavoráveis. Como as serpentes movimentavam-se sob as pedras, lutando com as crias pela sobrevivência da sua triste espécie, aparentemente sem qualquer futuro.
De repente, com a muleta oferecida pelas redes sociais sem qualquer controlo e com a complacência de boa parte da imprensa e das televisões, mas também em ligação com uma tendência internacional para o regresso dos autoritarismos – dos Estados Unidos ao Brasil, da Rússia à Hungria – eis que passaram a saltar de onde se escondiam e a emergir às claras, revelando, agora já sem quaisquer disfarces, ao que vêm. Mais: levando até ao fim, já não a antiga vontade de retorno a um ideal de pátria ou de império, que ninguém hoje consegue vislumbrar como viável ou sequer inteligível, mas com o desejo de impor uma sociedade assente no ódio, na defesa da desigualdade, no racismo, na homofobia, na perseguição da diferença, no efetivo desprezo pelos mais desprotegidos, na defesa de uma cultura passadista de ignorância e barbárie.
A esses fascistas, agora já os vemos também por cá, de tórax impante e de verbo agressivo, mostrando o rosto e as bandeiras, orgulhosos do fel que regurgitam e à espera da sua vez de chegar ao poder. Por isso ainda é mais necessário desmascará-los onde apareçam e imprescindível combatê-los sem tibiezas.
Rui Bebiano
Fotografia: Climb, por Pierre LagardePublicado originalmente no Diário As Beiras de 23/3/2019