Versão de um texto publicado na revista LER de Setembro
Designar como nova uma biografia de Lenine publicada em 1994 suscita alguns equívocos. É verdade que esta reformula ou completa biografias anteriores, muitas delas concebidas num registo apologético ou difamante, pois recorre a documentos apenas disponibilizados após a derrocada da União Soviética. Mas não só o faz de forma moderada – estudos posteriores foram mais longe com a mesma informação – como recorre as estratégias argumentativas de teor a-histórico, abusando de movimentos fast-forward para explicar decisões e episódios ocorridos muitos anos antes. Mais do que propriamente «nova», esta biografia será antes uma revisão, e um ajuste de contas, com o passado do autor e com a sua aceitação inicial da figura tutelar do líder revolucionário russo.
Dmitri Volkogonov foi um general soviético que dirigiu durante anos o trabalho ideológico e político no Exército Vermelho, não tendo manifestado então grandes dúvidas em relação às orientações do regime ou ao papel axial do seu fundador. Terá sido apenas em 1991, quando, na sequência da frustrada tentativa de golpe que levou Ieltsin ao poder, passou a presidir à comissão nomeada para analisar os arquivos soviéticos, que encontrou no antigo edifício do Comité Central do PCUS perto de 4000 documentos não publicados de Lenine e começou a reconhecer, no rosto do homem que até então incondicionalmente admirara, traços bem diferentes daqueles que o regime apeado projectara.
Tal como fez com as biografias de Estaline e de Trotski, Volkogonov serviu-se de documentação inédita para reler o mito e ajudar a derrubá-lo. Procurou, desde logo, pôr termo à vulgar distinção, ainda hoje corrente, entre a doutrina política «benigna» do leninismo e a irrefutável bestialidade do estalinismo, denunciada em 1956, por Krushchev, como uma corrupção da primeira. Tentou então provar que, afinal, a génese do estalinismo se encontrava já contida na intervenção e no cinismo político do pai-fundador: estavam lá a criação da Cheka e do Gulag, a perseguição da Igreja ortodoxa, o crescente cerco à imprensa, o esmagamento da maior parte da intelligentsia, a repressão sobre uma larga fatia do campesinato, o controlo férreo dos sindicatos, e sobretudo a instituição de um aparelho político-partidário que viria a funcionar como um poder autónomo dentro do próprio Estado. Documentou ainda os antecedentes familiares judaicos e alemães de Vladimir Ilitch, um assunto que havia permanecido tabu durante décadas.
Uma escrita pobre e algumas afirmações tendenciosas atenuam um pouco o interesse desta biografia. Mas ela valerá sempre por ter sido uma das primeiras a divulgar o conteúdo de alguns dos muitos escritos que permaneceram na sombra e jamais integraram as Obras Completas de Lenine. As quais, por tal motivo, permanecem parciais.
Dmitri Volkogonov, Lenine: Uma Nova Biografia. Tradução de Hugo Chelo e Miguel Morgado. Edições 70, 590 págs.