Evocam-se neste Abril cinquenta anos sobre a «Crise Académica de 1969» em Coimbra. Os seus acontecimentos podem ser hoje encarados de três formas diferentes: duas mais voltadas para a celebração, uma terceira ocupada com a compreensão histórica. A primeira contém o testemunho dos que a viveram, retomando com orgulho e nostalgia uma parte memorável das suas vidas e o contributo maior dado à luta pela democracia. A segunda, a ser vista com alguns cuidados, é ocupada com perspetivas parciais ou equívocas, por vezes associadas à manipulação utilitária e institucional da memória. A terceira forma é preenchida por olhares retrospetivos e compreensivos sobre o acontecimento e a sua época.
Perceber a «Crise» requer, em primeiro lugar, conhecer o seu contexto, e não apenas os factos que em Abril de 1969 a projetaram. Desde logo, observando a mudança sociológica do ambiente universitário, onde crescia a presença da classe média e das mulheres. Depois a expansão da cidade, com um timbre cada vez mais cosmopolita e urbano. Crucial foi também a influência política da «abertura marcelista», notória entre 1969 e 1971 (e logo de seguida infletida), com maior flexibilidade da censura e uma moderação provisória nos processos da repressão. Importante também foi a presença de uma cultura política de oposição ao regime, em crescimento desde as eleições de 1958, e de uma diversificação das suas correntes, com uma grande influência política e vivencial do marxismo e do existencialismo. Indispensável a entrada no meio universitário da atitude hedonista, libertária e inconformista dos anos 60, associada em boa parte à nova cultura juvenil de matriz anglo-saxónica. Para além da importância da vida estudantil pautada por uma cultura de debate, informada e crítica, que em Coimbra incorporava a atividade dos organismos da AAC e envolvia a sociabilidade dos cafés e das repúblicas, enquanto a cultura da «sociedade académica tradicional» tendia a desaparecer.
Em segundo lugar, a evocação da «Crise» alimenta certos mitos, que não resistem a uma abordagem histórica capaz de ultrapassar a volátil e ardilosa memória pessoal. Desde logo, uma falsa ideia de unidade, pois os cerca de 9.500 estudantes distribuíam-se por uma paisagem diversa: muitos de oposição (comunistas, socialistas, católicos progressistas, alguns «contestas», situados mais à esquerda, sobretudo trotskistas e situacionistas, e ainda nacionalistas africanos), alguns de direita ou extrema-direita, e muitos não-ativistas, ou mesmo indiferentes, que rondariam a metade da população estudantil. Deteta-se igualmente uma ideia imperfeita sobre a dinamização do movimento: a Direção da AAC foi importante, sem dúvida, mas foram-no também o Conselho de Repúblicas, a organização estudantil nas faculdades e organismos «conspirativos» de coordenação do movimento ou de intervenção política. É mais verdadeiro dizer que, tendo protagonistas, a «Crise» foi vivida sobretudo em coletivo e de uma forma muito plural. Ao mesmo tempo, é incorreta a ligação habitual entre o Maio de 68 e o episódio de 69, pois a caraterização e as formas do movimento de Coimbra são totalmente diversas, sobretudo no que respeita à cultura organizativa, aos métodos de luta e aos objetivos (os verdadeiros ecos do Maio francês só chegarão por volta de 1971). Importa ainda recordar que a luta contra a Guerra Colonial e pelo derrube do regime não estava inscrita nas palavras de ordem e objetivos do movimento, embora se encontrasse nas preocupações e expectativas de muitos dos que nele participaram.
Em terceiro lugar, a observação compreensiva da «Crise» permite destacar aspetos que a particularizam. Desde logo, recordar que ela entronca num processo de organização da luta estudantil, aberto em 1961 com a eleição da lista democrática presidida por Carlos Candal, e prolongado até ao 25 de Abril, com «picos» próprios em 1962, 1965, 1969 e 1972-73. De notar também o confronto teórico e prático então travado entre os adeptos de um «movimento associativo», mais corporativo ou reivindicativo, e um «movimento estudantil», cada vez mais politizado. A «Crise de 69» representou, de facto, um momento de viragem entre a preponderância do primeiro e a instalação do segundo, com uma radicalização acentuada a partir de 1971-1972 com o endurecimento do regime, a entrada em cena do tema-tabu da guerra e o encerramento compulsivo pela polícia da Associação Académica. Foi devido a esta que em Coimbra a luta estudantil se centrou então ainda mais nas faculdades e na atividade clandestina, com larga influência da União dos Estudantes Comunistas, criada em março de 1972, e de uma extrema-esquerda hiperativa e em crescimento, apoiada sobretudo em organizações maoistas e trotskistas. Neste contexto, aliás, a repressão estudantil foi muito agravada, tornando-se frequente a prisão, a tortura, o julgamento sumário e o envio para a guerra de grande número de ativistas. Elementar ainda para a evolução do movimento foi a presença e o ativismo das mulheres: muito acontecera desde a época da polémica «Carta a uma jovem portuguesa», publicada em 1961, onde se sugeria a simples possibilidade de uma vida associativa para as raparigas, até chegar à centralidade de muitas delas, embora ainda não ao protagonismo, nas vésperas do 25 de Abril. Neste campo, a «Crise» foi importante momento de mudança.
O movimento de 1969 representou, pois, um tempo de viragem na luta estudantil. E um espaço de enorme importância e de ousadia no combate pelo fim da ditadura, tendo abalado o regime caduco do Estado Novo e servido de exemplo para o país. Serviu ainda como uma importante escola de democracia para muitos jovens ativistas, cidadãos e cidadãs, que nas suas peripécias ganharam, para além de uma maior consciência oposicionista, a experiência do jogo democrático. Materializada no comprometimento cívico e político, partidário ou não, que tiveram no pós-25 de Abril.
Rui Bebiano
Imagem: Eleições na AAC em Fevereiro de 1969 em fotografia de Carlos Valente (Arq. CD25A)Publicado no Diário As Beiras de 19/4/2019. Versão ligeiramente revista.