Contra a desmemória

Abaixo-assinado de 71 professores da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra relacionado com um infeliz episódio ocorrido durante as festividades de Queima das Fritas. Sendo um dos signatários, entendo que não devo juntar aqui a minha opinião individual, que darei noutros lugares. Todavia, uma vez que este post servirá também para memória futura, junto três notas objetivas: 1) o episódio em si constou de uma brincadeira com o Holocausto, servindo-se ademais da simbologia de um comboio, que deveria ser integrada no habitual cortejo da festividade; 2) os 71 professores signatários foram aqueles que foi possível reunir em menos de 48 horas durante uma semana que é de interrupção das aulas, outros transmitiram entretanto o seu apoio a este documento; 3) alguns professores entenderam não assinar, o que estava, naturalmente, no seu direito; uma pequena minoria procurou demover colegas de o fazerem, o que não pode deixar de ficar registado. [Relembro: este comentário é estritamente pessoal e não vincula os signatários do documento que a seguir se transcreve.]

MEMÓRIA E RESPONSABILIDADE
Abaixo-assinado

A utilização da palavra “Alcoholocausto”, no cortejo da Queima das Fitas de 2019, pelo carro dos alunos fitados de História não veio a concretizar-se, após acordo com a direção da Faculdade de Letras. Aparentemente, no entanto, os/as responsáveis mantiveram-se convictos/as da justeza da sua opção inicial, uma vez que afixaram no carro alusões a uma “censura” e à existência de uma “polícia académica”, apresentando-se alguns/mas participantes com uma mordaça. Também o panfleto distribuído a lembrar o dia 27 de Janeiro como dia da memória do Holocausto faz alusão a um extermínio “com o intuito de desembaraçar a sociedade alemã e a Europa de inúmeras comunidades sociais”, formulação que ou revela profunda ignorância ou denuncia uma total indisponibilidade para referir com rigor os factos históricos.

Apesar da não afixação no carro do nome inicialmente escolhido, este caso não pode passar sob silêncio e, muito menos, pode ser encarado como um simples episódio sem relevância. Importa, assim, clarificar o seguinte:

  1. “Holocausto” é uma palavra que remete, sem subterfúgios, para o maior crime contra a humanidade alguma vez cometido, o extermínio genocida de mais de seis milhões de judeus, ciganos e outros grupos pelo regime nacional-socialista. Este genocídio fez-se em nome de uma ideologia racista e foi planificado e organizado de forma minuciosa e eficiente por uma máquina implacável posta em movimento por toda a Europa sob o domínio nazi. Não pode nunca perder-se de vista que, por detrás da generalidade do conceito, estão homens, mulheres e crianças inocentes, vidas que, criminosamente, não puderam ser vividas. É a enormidade do crime e a lembrança concreta dessas vidas não vividas que nos impõe aquilo a que Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, chamou o dever da memória. Este dever é imprescritível, isto é, não caduca, por maior que vá sendo a distância temporal. No caso vertente, a incorporação do símbolo de um comboio no grafismo utilizado pelos fitados de História não deixa a mínima dúvida sobre a intencionalidade da alusão contida no nome do carro – os vagões de gado que atravessaram toda a Europa transportando, em condições infra-humanas, as vítimas destinadas ao extermínio são um dos símbolos mais poderosos do genocídio. Estamos, pois, perante uma violação grosseira do dever de memória e perante uma ofensa gravíssima à memória das vítimas.
  2. Contrariamente ao que alegam os/as organizadores/as do carro, há limites para a liberdade de expressão, assim, como há limites para o uso da sátira e do humor. Limites que estão consignados na lei, mas que, antes de serem de ordem jurídica, radicam num conceito elementar de responsabilidade ética individual. O mais óbvio desses limites atinge-se quando estão a ser feridos direitos que pertencem legitimamente a outros. Nem tudo pode ser objeto de sátira: para além dos critérios óbvios do bom gosto, a sátira constitui um modo de discurso que carece sempre de uma legitimação ética. É lícito e desejável transformar uma pessoa ou uma instituição em objeto de riso quando se trata de defender valores substanciais através da denúncia de atos censuráveis praticados por essas pessoas ou instituições. Não é lícito fazê-lo quando a forma da crítica passa inteiramente ao lado do que se pretendia criticar e viola gratuitamente a dignidade humana. Neste caso, a dignidade humana de vítimas para sempre silenciadas. Quem assim procede torna-se, implicitamente, cúmplice dos crimes cometidos e não poderá, em nenhuma circunstância, furtar-se a esta responsabilidade. E muito menos poderá, quando confrontado com a indignidade da sua posição, arrogar-se a posição de vítima de um qualquer ato de “censura”.
  3. A situação criada é ainda agravada pelo facto de, presentemente, circularem com insistência em todo o mundo teses negacionistas, rejeitando a própria existência histórica do Holocausto. É particularmente grave que sejam estudantes universitários de História a colaborar numa lógica de banalização que os aproxima, objetivamente, do negacionismo.

Os/as abaixo-assinados/as, docentes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sentem-se profundamente envergonhados e amargurados pela imagem que, com a sua ignominiosa escolha inicial, o grupo de promotores do carro “Alcoholocausto” projetou de si próprio, nos órgãos de comunicação e em outras redes em que defendeu o seu projeto, enquanto grupo de finalistas do curso de História, implicando, ao mesmo tempo, a Faculdade e a Universidade a que pertence. Mas, mais do que isso, entendem ser seu imperativo de consciência, em nome do princípio fundamental de humanidade imposto pela memória das vítimas, trazer a público uma firme posição de inteiro repúdio e total rejeição.

Coimbra, 7 de Maio de 2019
Adriana Bebiano, Ana Cristina Araújo, Ana Paula Arnaut, Anabela Fernandes, António Campar, António Manuel Rebelo, António Sousa Ribeiro, Carlos Ascenso André, Carlos Reis, Carmen Soares, Catarina Caldeira Martins, Clara Keating, Claudete Oliveira Moreira, Claudia Ascher, Conceição Carapinha, Cornelia Plag, Cristina Robalo Cordeiro, Diogo Ferrer, Domingos Jesus da Cruz, Fátima Velez de Castro, Fernando Matos de Oliveira, Frederico Lourenço, Graça Capinha, Inês Amaral, Isabel Paiva, Isabel Pereira, Isabel Santos, Jacinta Matos, Jens Liebich, Joana Antunes, João Domingues, João Figueiredo, João Gouveia Monteiro, João Maria André, João Muralha, João Nuno Corrêa-Cardoso, John Havelda, José Luís Brandão, Judite Carecho, Katharina Baab, Luca Antonio Dimuccio, Lúcio Cunha, M. Conceição Lopes, Manuel Portela, Margarida Miranda, Maria Beatriz Marques, Maria de Fátima Gil, Maria do Céu Fialho, Maria Isabel Caldeira, Maria João Silveirinha, Maria João Simões, Maria José Canelo, Maria Luísa Portocarrero, Marta Anacleto, Norberto Santos, Paula Barata Dias, Paula Santana, Paulo Nossa, Paulo Silva Pereira, Pires Laranjeira, Raquel Vilaça, Rita Marnoto, Rogério Paulo Madeira, Rosário Ferreira, Rosário Neto Mariano, Rui Bebiano, Rui Ferreira, Rui Manuel Afonso Mateus, Rui Pereira, Rute Soares, Sara Sousa

    Coimbra, Democracia, Memória.