A terrível frase «Muera la inteligencia! Viva la muerte!» terá sido pronunciada na manhã de 12 de Outubro de 1936 no Salão Nobre da Universidade de Salamanca. Foi seu autor o general franquista José Millán-Astray e com ela pretendia afrontar o reitor Miguel de Unamuno após este ter feito um elogio da sabedoria e do diálogo. Existem versões um pouco diferentes do episódio, mas o que importa é que têm sido estas as palavras repetidas nos últimos oitenta anos para destacar o combate justo da razão e da democracia contra a força da ditadura e da ignorância. Na Alemanha, o nazismo nascera também da imposição do ódio e do obscurantismo sobre o diálogo e o conhecimento, queimando livros e conduzindo o mundo ao pesadelo da Segunda Grande Guerra e do Holocausto. Todos os fascismos tiveram, aliás, este denominador comum: o repúdio da razão e da sabedoria por troca com a força do instinto e as certezas fundadas em ideias muito básicas que dominaram o quarto de século chamado por Hannah Arendt de «tempos sombrios».
No pós-guerra a consciência desta situação manteve-se muito presente e por isso os Estados democráticos viram na expansão da educação e do conhecimento uma forma de impedir o regresso da ignorância e da barbárie. Assim, durante as décadas de 1950/1960 assistiu-se ao alargamento dos sistemas de ensino, ao crescimento da produção literária e artística, ao aumento do número de museus e de bibliotecas, ao culto do debate e à propagação das humanidades, das ciências sociais e das artes. Mesmo sob ditaduras, como em Portugal, este foi um caminho que parecia irreversível. Quem folhear o jornal estudantil coimbrão Via Latina dos anos de 1959-1962 surpreender-se-á com o número e a qualidade dos artigos escritos sobre cinema de autor, filosofia existencialista ou literatura contemporânea que enchiam o jornal. Ler, conhecer, pensar, debater, ver cinema ou arte, eram agora algo socialmente respeitado e reconhecido. O estúpido, o ignorante, aquele que se interessava apenas por futilidades, era geralmente ignorado.
Ao longo dos últimos vinte anos tudo isto se inverteu. A expansão do neoliberalismo e o culto do dinheiro fácil e rápido levaram à devastação de muitos países, ao encolhimento do espaço público, à precarização e fragmentação do trabalho, ao culto do egoísmo e, como diz Marilena Chauí, «da ideia do empresário de si mesmo» como modelo social que destrona o cidadão instruído e solidário. Ao mesmo tempo, a simplificação do ensino que acompanhou o seu alargamento, a expansão da imprensa tabloide e da televisão trazendo consigo um conhecimento simplificado e a atração pelo fútil, a revolução comunicacional proporcionada pela Internet, criaram todo um outro universo, no qual a valorização do saber, da leitura, da cultura, do debate sustentado, decrescem à medida que se amplia o peso do imediato e dos movimentos de natureza anti-intelectual apoiados no senso comum. Há dias, em entrevista ao El País, o filósofo Jürgen Habermas declarava que «não pode haver intelectuais se não há leitores», e este é, de facto, um dos problemas do mundo presente: um recuo do conhecimento que não seja eminentemente prático, o desinteresse por uma formação sustentada e até a desvalorização de quem a procura.
Assim chegámos a um ponto no qual ocorrem factos ainda há duas décadas impensáveis: estudantes universitários de humanidades a esconder que gostam de ler para não serem alvo de bullying, professores que baixam o nível das aulas para não serem rejeitados, jornalistas a escrever textos cheios de imprecisões e erros de sintaxe sem vergonha de o fazerem, quadros partidários ou associativos incapazes de reunir duas ideias num discurso escorreito a falar para audiências que também não exigem mais, pessoas sem qualidades projetadas para uma ribalta fugaz, enquanto quem estudou, pensou, propôs de forma séria e sustentada, é relegado para a obscuridade social ou para os porões da política. Saber não dá prestígio, por estes dias. Pelo contrário, é muitas vezes confinado a margens e a vielas. Foi assim também nos anos vinte do século passado e depois aconteceu o que se sabe. Mas é por isso que quem rejeita este poder da ignorância tem o dever de resistir. Sabendo que «o tempo toma sempre novas qualidades».
Rui Bebiano
Fotografia: Snake PlisskenPublicado originalmente no Diário As Beiras de 18/5/2019