Tenho uma convicção reforçada a cada dia: a de que as grandes conquistas políticas e sociais apenas são irreversíveis, e têm condições de antecipar outras que as irão ampliar, se não dependerem apenas de interesses e acordos conjunturais. Isto é, se forem articuladas com uma consciência coletiva, de ordem histórica e cultural, da sua necessidade e da sua justeza. A partir da Revolução Francesa, os princípios emancipatórios da igualdade perante a lei, do valor da liberdade individual, da fraternidade como elemento edificador do Estado-Providência, da justiça social e dos direitos humanos puderam vingar – apesar da linha irregular de avanços e recuos – porque estiveram presentes no combate de ideias e em grande número de obras literárias e artísticas. Foram estes que estruturam em boa parte do mundo as convicções, as expetativas, o gosto e a noção de humanidade pelos quais tantos se bateram ao longo de gerações, oferecendo coesão e fundamento subjetivo a essa luta.
Quem leu Os Miseráveis, de Victor Hugo, não esquecerá a luta de décadas de Jean Valjean pela reparação da injustiça que o convertera num proscrito. Quem olhou o quadro O Viajante Sobre o Mar de Névoa, de Caspar D. Friedrich, guardará consigo uma ideia de grandeza a propósito do confronto heroico do indivíduo com o mundo rude e instável que o rodeia. Quem seguiu as páginas de Cabra-Cega (Drôle de Jeu), de Roger Vailland, aprenderá para sempre que mesmo os mais corajosos e dedicados podem ter escolhas pérfidas. Já no século XX, os meios «de reprodutibilidade técnica» – como chamou Walter Benjamin aos instrumentos que permitiram popularizar artes como a fotografia, o cinema e a música –, associados à redução do custo de livros e publicações periódicas, ampliaram aquelas possibilidades. Foi do seu encontro com o alargamento das populações educadas que resultaram gerações de homens e de mulheres capazes de viver as mudanças do mundo apoiados em representações e relatos que iluminavam, mobilizavam ou corrigiam as suas escolhas e as suas expectativas.
O acentuado recuo da cultura literária e artística ocorrido nas últimas décadas tem feito com que começássemos a ver diluído esse corpo de referências, mesmo entre largos setores de pessoas que hoje, em muito maior quantidade que no passado, frequentam o sistema de ensino e têm uma escolaridade mais extensa. Sendo verdade que isto de modo algum se aplica a toda a gente – e que existem muitíssimas pessoas jovens que escapam de todo a este novo padrão dominante –, mesmo nos espaços cruciais de salvaguarda e propagação da tradição cultural herdada que são as universidades é agora facílimo deparar, até nos cursos de humanidades, com turmas inteiras de alunos que desconhecem de todo esse património e que, pior, não manifestam interesse em conhecê-lo, rejeitando em particular a prática regular e imersiva da leitura. Mesmo o conhecimento adquirido circula sem um fundamento sólido e funciona muitas vezes como algo que serve basicamente para cumprir «objetivos pedagógicos», mas não para alimentar as consciências e as vidas de quem com ele convive e para municiar o debate crítico. Porque consta sobretudo de ideias recebidas, juntas como peças de um puzzle, e não tanto de experiências conquistadas, dinâmicas e solidificadas na memória, que podem, essas sim, ficar para a vida inteira e apoiar as consciências.
Como faço parte do exército, talvez não muito extenso, mas firme e obstinado, dos otimistas, e além disso como historiador vivo particularmente consciente da efemeridade de tudo, sei que este panorama corresponde a uma fase que será superada, e que a humanidade não sobreviverá sem o contributo do património de conhecimento e criação que lhe permitiu diferenciar-se das outras espécies. Mas é imperativo tomar-se consciência desta situação, pois sem bússola é muito mais fácil perdermos o norte e enganarmo-nos nas rotas, ficando ao dispor de todas as tempestades. Os programas políticos, sobretudo os de índole progressista, devem ter esta dimensão em conta, não a remetendo, como têm feito, para parágrafos invisíveis empurrados para a última página.
Rui Bebiano
Fotografia de Jared LankVersão ligeiramente revista de artigo publicado no Diário As Beiras de 1/6/2019