A educação das novas gerações não se faz apenas por intermédio da aquisição teórica de conhecimentos – nomes, episódios, proclamações – inscritos numa tradição de objectividade. Parte importante da construção das identidades pessoais e colectivas é também criada pela incorporação de arquétipos e valores obtidos através da integração da fantasia como legado, provenha ela dos mitos clássicos, dos textos sagrados ou da tradição literária. Esta foi definindo um corpo móvel de criaturas que deve ser protegido.
Parte desta preservação inclui muitos dos modelos individuais incorporados na infância e na adolescência por diversas gerações e que vivem actualmente um conjunto de rápidas e notáveis mudanças. Fernando Savater já em 1976 havia publicado A Infância Recuperada, um belo livro no qual procurou recuperar, através de um exercício de pesquisa autobiográfica, muitos autores então desprezados como «distracções juvenis» (Stevenson, Verne, Salgari, Conan Doyle, entre outros), por ele sublinhados como instrumentos fundadores de uma leitura prospectiva do mundo. Em 2004 voltou ao tema publicando Criaturas do Ar, agora editado em Portugal pela Ambar.
O livro inventaria um conjunto de personagens, que manual algum comporta, e que, tanto quanto muitas das figuras humanas dotadas de comprovada existência histórica, tendem a ausentar-se do nosso imaginário. Sob a forma de 31 monólogos, que coloca na boca dos heróis e dos vilãos que faz desfilar perante o leitor (incluindo no último a ficção dele próprio), o filósofo e escritor espanhol produz um roteiro por onde passam as (ainda?) ilustres figuras de Sherlock Holmes, Tarzan, Desdémona, Dulcineia, Drácula, Mr. Hyde, Pimpinela Escarlate, Sindbad, Peter Pan, Sam Spade, do Homem Invisível ou da Bela Adormecida. Na voz de cada uma delas, produz-se então uma narrativa que incorpora os seus principais traços e os aspectos decisivos das suas inventadas biografias, permitindo ao leitor reconhecer, ou encontrar, a essência de alguns dos mitos de origem literária que a cultura ocidental foi produzindo e cuja tradição se tem vindo a perder. No final, um apêndice («Quem é quem») descodifica o processo de construção de cada uma dessas personagens, ao mesmo tempo que indicia pistas de leitura para um entendimento mais completo da sua «vida e obra». O método não é novo, mas assume aqui um formato particularmente pedagógico: quem o desejar pode iniciar, quase aleatoriamente, um sem número de viagens, ou então regressar aquelas que deixou incompletas, algures em local escuso do seu passado pessoal.