1. Trinta anos após a derrocada eufórica do Muro de Berlim em 9 de Novembro de 1989, boa parte do seu cenário permanece na nossa memória partilhada. Mais que uma incomum fronteira física, ele constituía uma metáfora, e as metáforas não se apagam por mera vontade política ou a golpes de picareta. Do lado ocidental, uma pesada vedação de 155 quilómetros contornava todo o perímetro da parte da cidade que não fora ocupada pelo Exército soviético. Desse lado era possível tocar o betão que lhe dava solidez, desenhar palavras de ordem ou street art, escalando até uma posição confortável conseguia mesmo observar-se de longe o hermético «Leste». Do lado contrário, a chamada «barreira de proteção antifascista» era cinzenta e deprimente, eriçada de arame farpado, guardada por polícias de gatilho pronto, ladeada por uma terra de ninguém minada e perigosa para qualquer cidadão que tentasse a mera aproximação ao carcinoma do capitalismo. Em cada metade de Berlim, viviam-se existências delirantes que concebiam a realidade a partir de duas escalas que simultaneamente se olhavam e ignoravam. Como se uma não pudesse viver sem a outra, aceitando que a proximidade se materializava numa distância que condenava cada modelo à inflexível clausura. O Muro era também a metáfora suprema da simetria negra da Guerra Fria.
2. A surpreendente festa libertada na madrugada de 9 de Novembro de 1989 – nem as manifestações, cada vez maiores, iniciadas em Leipzig dois meses antes, preludiavam um tal desfecho – teve tanto de espontâneo e de natural como de objeto de incredulidade e embriaguez por parte de quem nela participou ou de quem, por todo o mundo, a acompanhou em direto pela televisão. À exceção dos entrincheirados defensores do modelo inflexível do «socialismo realmente existente», para a maioria dos alemães e dos europeus era visível o estado caótico do sistema económico da RDA, a decrepitude e o isolamento dos seus dirigentes, a interferência crescente da repressão da STASI e da censura, a ausência de respostas para as ambições de uma geração que as organizações do partido único já não enquadravam, a dissensão instalada entre os criadores e os intelectuais, o descontentamento manifesto de um cada vez maior número trabalhadores, em particular os mais jovens. Essa perceção havia tornado inevitável a transformação de qualquer sinal de mudança, por mínimo que fosse, na expectativa de uma qualquer esperança. Independentemente de esta deter ou não uma dimensão programática. A vaga de transformações no leste europeu que se sucedeu ao fim do Muro, estabelecendo um ponto de viragem na história recente do qual o historiador marxista Eric Hobsbawm se serviu para balizar o seu «curto século XX», tornou-se por isso imparável e irreversível.
3. Todavia, a realidade não foi simpática para as expectativas. Um quarto de século depois dos acontecimentos festivos, grande parte dos anseios e ilusões libertados está por cumprir e jamais terá a forma que muitos esperavam. Tornou-se rapidamente visível que o capitalismo, lançado ele próprio numa situação de crise da qual conhecemos hoje a faceta mais caótica e sombria, não estava em condições de oferecer o hipotético paraíso que muitos dos alemães de leste e dos habitantes dos autoproclamados países socialistas acreditavam existir do «outro lado». As contradições agudizaram-se em pouco tempo, oligarquias exploraram no terreno a dissolução dos regimes fortes, que havia deixado a maioria dos cidadãos desprotegidos diante da barbárie neoliberal ou até de organizações criminosas. O próprio ideal comunista, tal qual era entendido pelos partidos calcificados no poder, implodiu e não soube recompor-se, procurando os seus herdeiros reunir os cacos de um sistema e de um modo de vida, sem grandes preocupações em repensar a realidade de um mundo em rápida mudança. Adaptando o ideal de solidariedade social e de governo para as maiorias a uma lógica capaz de integrar os valores da liberdade política, de expulsão da tirania do Estado e de aproveitamento das forças dinâmicas da sociedade para o crescimento da felicidade e do bem-estar dos cidadãos. Mas até nessa missão falharam.
4. Grande parte da esquerda não filiada nos partidos comunistas tradicionais – estes em boa parte irmanados na defesa do modelo que a Queda do Muro remetera para os livros de História ou para os estudos de Ciência Política, e tantos têm sido escritos sobre o que aconteceu nestas três décadas –, não deixou de avaliar positivamente as transformações operadas após 1989. Embora, como lhe competia, rapidamente se lançasse também num processo de leitura crítica da degradação dos sistemas emergentes no leste europeu a partir dessa data. Mas essa não foi a atitude geral: entre nós, não deixa de ser sintomática a forma como alguns setores da esquerda jamais se libertaram dos fantasmas da Guerra Fria e têm encarado a data que agora se evoca. Em texto publicado há poucos anos no jornal Avante!, a direção do PCP reescreveu a história lançando um anátema sobre o que refere como «a chamada queda do Muro», comemorada «pela direita e pela social-democracia», e retomando o argumento de que o seu levantamento fora determinado pelo ocidente para «conter o comunismo», não pelas autoridades soviéticas e leste-alemãs para impedir a fuga maciça de cidadãos para as desejadas democracias. Este ano, o jornal optou pelo silêncio. Outros setores de esquerda têm evitado o que deveria ser um higiénico distanciamento das experiências do «socialismo» burocrático e da sua memória, fugindo a aprofundar o tema. Tanto tempo depois, e apesar da pulverização dos fragmentos de betão, a derrocada do Muro de Berlim mantém as suas ondas de choque e continua a oferecer lições.
Rui Bebiano
Imagem: Uma longa fila de automóveis Trabant prepara-se para ultrapassar o Checkpoint Charlie, rumo ao lado ocidental, em 10 de Novembro de 1989. Fotografia EPA/AFP.