Não existem causas fáceis porque não existem verdadeiras causas que não exibam bandeiras. Quer isto dizer que quando tomamos uma posição pública afirmativa que não seja de âmbito meramente individual e antes diga respeito ao coletivo, estamos a interferir com situações estabelecidas e a dar a conhecer uma proposta ou uma ideia, perturbando sempre quem delas discorda. O conceito de causa, aplicado, não a um efeito, mas a um conjunto de interesses partilhados pelos quais alguém se bate, impõe sempre esse envolvimento de natureza conflitual, sendo por seu intermédio que as sociedades passam de um estádio a outro e se afirmam na conquista de direitos mais amplos e de uma vida melhor, ainda que episodicamente possam também, como se sabe, viver alguns recuos.
Já da ausência de causas resulta a estagnação ou, pior, o retrocesso social. É esse o resultado da indiferença face às dinâmicas do mundo e do triunfo do conformismo, traduzido numa atitude que apenas nos adequa aos comportamentos socialmente aprovados, em particular àqueles que resultam da ordem política hegemónica e que configuram um padrão de vida julgado imutável. É a consigna neoliberal sobre a estagnação do sistema económico, a TINA («there is no alternative»), aplicada à vida diária, com o individualismo e a apatia como instrumentos decisivos que afastam o valor do compromisso, da partilha e da mudança. O psicobiólogo italiano Alberto Oliverio escreveu, em Como nasce um conformista, sobre a forma como estas atitudes não resultam tanto de uma predisposição humana para agir desse modo, mas antes do estabelecimento de uma ordem política, social, cultural, religiosa ou económica que insiste em prescrever o que é apropriado e o que, ao invés, se deverá excluir.
Uma das marcas negativas que ainda preservamos das longas décadas do Estado Novo – existe quem faça recuar esta prática mais atrás ainda, até à repressão e aos medos da Inquisição – é precisamente a tendência, de certo modo atávica, uma vez que foi transmitida geracionalmente, para calar, para aceitar, para não propor, para não discutir ou discordar, para não contestar ou resistir, seguindo comportamentos e estados de espírito onde o respeito se confunde com a complacência perante a injustiça, o temor da autoridade e a aceitação como natural de uma «ordem das coisas» apresentada como imutável. É claro que estas escolhas ocorrem em todos os lugares, mas entre nós foram de tal modo integradas que muitos anos após o 25 de Abril conservam ainda a sua influência, sendo um claro défice de dinamismo da nossa opinião pública em boa medida um resultado dessa pesada influência.
Existe algo, todavia, que tem vindo a agravar o peso deste conformismo herdado do passado. Por um lado, ele é ampliado por fenómenos de comunicação que tendem a reduzir a dimensão da sociabilidade coletiva, fechando boa parte dos cidadãos no espaço do trabalho e na vida pessoal e familiar, deste modo estagnando a dimensão de associativismo e partilha que sempre estimula o caminho das causas. Por outro, vivemos tempos maus para a solidariedade, como atitude de partilha dos problemas e anseios comuns à nossa coletividade de pertença, e também, o que é particularmente dramático, uma época de recuo da compaixão, esse sentimento de empatia para com as tragédias dos outros que se liga a uma atitude construtiva e altruísta. Entramos aqui na lógica do ovo e da galinha a propósito daquilo que é determinante: as consequências do individualismo dominante fecham-nos aos outros e à mudança, mas dependerá sempre de nós inverter a situação.
Rui Bebiano
Imagem: J.-L. Trintignant em fotograma de «Il conformista», de Bernardo BertolucciPublicado originalmente no Diário As Beiras de 30/12/2019