Circulou na passada semana uma notícia sobre Sanna Marin, a jovem chefe da coligação de esquerda que neste momento governa a Finlândia, e a sua suposta proposta de redução da semana de trabalho para 24 horas, em quatro dias de seis horas diárias. As reações não tardaram, na maioria dos casos distribuídas pelo apoio entusiástico ou por uma rejeição muito hostil. Na verdade, tratou-se de um equívoco, pois aquilo que Marin de facto fez não foi uma proposta, mas apenas a projeção de uma possibilidade futura. Adiantada não agora, mas em Agosto de 2019, quando ainda nem era sequer primeira-ministra. Relembro o caso, não para repor a verdade, o que não valerá o esforço, mas como pretexto para a defesa da projeção de futuros enquanto forma essencial de fazer política.
Voltando à proposta que o não foi, devemos interpretá-la antes como antecipação de um desígnio. A possibilidade sugerida por Sanna Marin foi, aliás, bem mais do que uma simples atualização do «direito à preguiça» proposto em 1880 por Paul Lafarge, o genro e discípulo de Marx. De facto, não se tratou apenas de reconhecer a dimensão positiva de um espaço alargado de descanso e lazer como condição para uma experiência mais alargada da felicidade e do bem-estar, subtraindo o indivíduo à ditadura, por vezes feroz, das cadências do sistema produtivo. Em associação com estudos recentes sobre o equilíbrio entre a fruição do lazer e o aumento da motivação e da inteligência humanas, determinado pela maior disponibilidade de corpos e espíritos, Marin admitiu a hipótese de uma forma mais racional e menos alienante de encarar o trabalho humano.
Tratou-se também de uma situação na qual uma proposta programática integrada numa campanha eleitoral foi mais longe que a mera enunciação de sugestões avulsas e imediatistas sobre «trabalho», «produtividade» ou «crescimento». De facto, o valor de toda a proposta política pode e deve conter – assim aconteceu com aquelas que produziram mudanças efetivas e duradouras na história das sociedades – uma combinação de realismo com uma dimensão de «irrealismo», que coloca no futuro metas às quais apenas se pode chegar se elas forem antecipadamente adiantadas. A utopia é o não-lugar, mas é também a projeção de possibilidades e o ensaio de propostas. O filósofo Ernst Bloch escreveu mesmo uma obra em três grandes volumes, «O Princípio Esperança», na qual demonstrou que o caminho da humanidade, da pré-história aos anos terríveis da sua publicação, realizada entre 1938 e 1947, teve sempre como motivação a apresentação de «possibilidades impossíveis» dinamizadoras de toda a mudança.
Disto devem dar conta todos os projetos políticos consistentes. Aqueles que não se limitam a mudar algumas peças da máquina, aumentando apenas a sua velocidade, sem pensar como pode ela ceder o lugar a outra, que não faça apenas mais, mas também «outra coisa», melhor adaptada às necessidades sociais. Governos, cidades, instituições, partidos, precisam, para melhor cumprir a sua missão, de aplicar constantemente esse método de pensar «bem para a frente», imaginando e desdobrando de forma pública o que virá e não se limitando a administrar o imediato. Foi isto que fez a agora primeira-ministra finlandesa, acusada de irrealismo pelos defensores da imobilidade e dos interesses que esta serve, ao considerar a hipótese de racionalizar com visão e ousadia a experiência do trabalho. Deve preparar-se o futuro por antecipação e não esperar que ele caia do céu.
Rui Bebiano
Fotografia do Instagram de Sanna MarinPublicado no Diário As Beiras de 11/1/2020