Nada que não fosse de esperar: a atitude estrábica de usar aquilo que de horrível está a acontecer em alguns estádios e ocorre em clubes de futebol num amargo ramerrão (este sim, «pseudo-intelectual») contra o futebol. Desporto do qual, como do ténis ou do hóquei no gelo, como de um quadro pós-impressionista ou de uma ópera de Wagner, como de uma pessoa ou de uma experiência, se pode gostar ou não, dele ter boas ou más recordações – Camus, que foi guarda-redes do Racing de Argel, dizia ter sido o futebol a ensinar-lhe a verdadeira dimensão da ética do dever – mas onde a maldade chega apenas por interposição de outros e bem perigosos interesses. Não por intervenção das regras do jogo ou da paixão desmesurada do adepto comum. Sobre este, aqui fica um texto de Eduardo Galeano, incluído no belo ‘Futebol ao Sol e à Sombra’.
«Ondulam as bandeiras, soam as matracas, os foguetes, os tambores, chovem serpentinas e papel picado: a cidade desaparece, a rotina esquece-se, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe as suas divindades. Embora o adepto possa contemplar o milagre, mais comodamente, na tela da sua televisão, prefere cumprir a peregrinação até ao lugar onde possa ver em carne e osso os seus anjos a lutar num duelo contra os demónios da jornada.
Aqui o adepto agita o lenço, engole saliva, engole veneno, come o boné, sussurra preces e maldições, e de repente arrebenta a garganta numa ovação e salta feito pulga abraçando o desconhecido que grita golo ao seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o adepto é muita coisa. Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores, todos os árbitros foram comprados, todos os rivais são trapaceiros.
É raro o adepto que diz: “A minha equipa joga hoje”. Diz sempre: “Nós jogamos hoje”. Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, da mesma forma que os outros onze jogadores sabem que jogar sem claque é como dançar sem música.
Quando o jogo termina, o adepto, que não saiu da arquibancada, celebra a sua vitória, que goleada fizemos, que coça que nós demos, ou chora a sua derrota, roubaram-nos outra vez, árbitro ladrão. E então o sol vai embora, e o adepto vai-se. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto se vão apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o adepto também volta à sua solidão, um eu que foi nós; o adepto afasta-se, dispersa-se, perde-se, e o domingo é melancólico transformado numa quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval.»