Quando recuo na memória da parte da história contemporânea que pude testemunhar, encontro quatro anos nos quais aconteceram situações excecionais, que em muito abalaram a perceção da realidade e o mundo daqueles que as viveram. Corresponderam a quatro momentos de viragem, onde novos factos, equilíbrios e até valores se impuseram, dando corpo a viragens que se confirmaram irreversíveis. Foram anos-catástrofe – decisivos, no sentido da palavra katastrophḗ no antigo grego – que fecharam uma etapa no trajeto da história recente, inaugurando outra, radicalmente nova. Suscitando de imediato, naqueles que os viveram, a impressão de haverem atravessado uma fronteira, entrando num mundo novo, estranho e inesperado.
O primeiro ano foi o de 1968. Nele ocorreram dois episódios fortes que moldaram as escolhas políticas (as minhas também, seguramente) e modificaram a estrutura de muitas consciências. Um foi o «Maio de 68», a revolta estudantil de Paris, em particular na sua dimensão vivencial e simbólica. Ela não impôs mudanças políticas profundas, mas ofereceu a toda uma geração, mais educada e mais exigente, e sobretudo inconformista, a perceção de que a conquista da felicidade não tinha uma base apenas material, vinculada à ideologia, incluído uma forte componente pessoal e libertária. O outro episódio foi a abertura política da «Primavera de Praga», na Checoslováquia, e o seu dramático termo imposto pela invasão dos tanques soviéticos. Representou, para muitos, o derradeiro sinal da irreformabilidade de um «socialismo de Estado» autoritário e centralista, assente no partido único, na ausência de liberdade e no poder da gerontocracia.
O segundo ano de viragem foi 1989. Apesar de pressentível nos meses que a antecederam, a Queda do Muro de Berlim impôs uma alteração de cenário na Alemanha, na Europa e no mundo, impensável durante as longas e tensas décadas da Guerra Fria. Para quem pôde assistir em direto, à hora do jantar, a essa «primeira revolução televisionada», os acontecimentos na fronteira berlinense pareceram menos críveis que uma aterragem de marcianos em Manhattan. A partir daquele momento, com a derrocada sucessiva dos governos europeus do «socialismo realmente existente» e o termo, dois anos depois, da União Soviética, foi possível comprovar que, por mais imutável e sólida que pudesse parecer, jamais uma ordem do mundo seria eterna. A divisão bipolar do planeta, saída do final da Segunda Grande Guerra, ruía com grande estrondo e celeridade.
O terceiro ano desta série incluiu um acontecimento no qual a televisão cumpriu também um papel decisivo. A 11 de setembro de 2001, o choque de dois aviões de passageiros contra as Torres Gémeas, no World Trade Center de Nova Iorque, disseminou de imediato um sentimento de medo e de ódio, associado a uma vaga securitária e de desconfiança, que impuseram esse dia como um novo momento de viragem. Pautado pela forma como as relações internacionais, os cultos religiosos, o relacionamento entre grupos sociais de origem geográfica ou étnica diversa, e a própria teoria política, passaram a incorporar uma lógica de suspeita e um conjunto de reservas que deixaram para trás o tempo, vindo dos anos sessenta e que se prolongara por duas décadas, em que a lógica da comunicação entre os povos se tinha transformado em fator de proximidade e de desenvolvimento.
2020, este ano, é a última destas quatro etapas. Ainda é cedo para ver e compreender a forma objetiva como o Covid-19 irá impor modificações ao modo como olhamos e vivemos o mundo. Aliás, é cedo também para compreender a extensão da pandemia e conhecer o número das suas vítimas. Todavia, já parece claro que este fenómeno novo – novo principalmente na sua expansão e na rapidez com que está a progredir – irá, num futuro bem próximo, fazer com que as relações sociais, o modo de encarar os cuidados de saúde, a forma de viver no meio das multidões, a organização dos espetáculos, a própria liberdade de movimento, passem a ser encarados, no vasto conspecto das modalidades da vida social, em associação com um conjunto de cuidados e de reservas. O temor fará agora com que as nossas vidas passem para um outro patamar de organização e cuidado.
O título desta crónica parafraseia, como alguns leitores logo notaram, o do conhecido livro do jornalista norte-americano John Reed, o primeiro ocidental a escrever um relato detalhado sobre a revolução russa de 1917. Em Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo, publicado dois anos após a tomada do poder pelos bolcheviques, Reed ofereceu ao leitor um primeiro panorama dos factos e das rápidas transformações que logo anteviu como em condições de introduzirem uma viragem súbita e profunda nas expectativas e nos destinos da humanidade. De alguma forma, no sentido da História.
Rui Bebiano
Fotografia: Sergei Bobylev/TASSPublicado originalmente no Diário As Beiras de 21/3/2020