Ao contrário de uma ideia muito comum, individualismo não é sinónimo de egoísmo. Este define um centramento do sujeito em si mesmo e nos seus interesses, não hesitando neste processo em lesar os outros. Já o primeiro apoia-se na independência e na liberdade de escolha e de decisão, não representando necessariamente uma quebra do dever de solidariedade. Funda-se na crença na singularidade do indivíduo, no valor do seu critério, na possibilidade de escapar ao exercício arbitrário da autoridade e de se juntar a outros, participando de livre-vontade em projetos coletivos que visam o todo e a sua transformação. O indivíduo moderno, liberto da dependência do divino pelo humanismo renascentista, e depois sustentado pelos ideais à época emancipatórios do racionalismo e o iluminismo, integra essa dupla condição, capaz, através do contrato social, de associar a escolha de cada um ao seu papel nas dinâmicas partilhadas.
A partir da Revolução Francesa, nas sociedades democráticas construídas nos últimos dois séculos, foi precisamente a defesa dos direitos políticos e sociais do indivíduo, agora cidadão, aquilo que permitiu convertê-lo em fator de oposição às ditaduras. Todas elas, aliás, são tendencialmente coletivistas e anti-individualistas, dado colocarem o sujeito na dependência de um interesse apresentado como geral – o da nação, da classe social, do grupo étnico – que o transcende e lhe impõe um modo de pensar e uma forma de agir. Ao mesmo tempo, a liberdade caraterística do individualismo dá grande valor à esfera da privacidade, espaço no qual o pensamento, a sensibilidade e a vida de cada homem ou mulher ganham identidade e se autonomizam da tirania do coletivo. De facto, não existe grande valor na liberdade quando ocorre uma vigilância rigorosa por parte das instituições que representam o coletivo sobre aquilo que pensamos, fazemos, escolhemos ou dizemos, ou ainda sobre as companhias que escolhemos e os lugares por onde circulamos.
Entretanto, se o domínio do privado é questionado pelos aparelhos repressivos das ditaduras, é-o igualmente, de uma forma crescente, nas atuais sociedades hiperinformadas, onde os processos de aquisição e de circulação da informação se ampliaram exponencialmente, enquanto deram lugar, por motivos de natureza política e económica, à proliferação de tecnologias que cercam e reduzem o espaço da privacidade. Na China, isto já foi mais longe que em qualquer outro lugar. Aí, um sistema de créditos monitora as decisões de cada cidadão, podendo atribuir punições ou recompensas consoante o seu comportamento se afasta ou aproxima do modelo imposto pelo Estado, determinando um acesso limitado ao crédito ou, inversamente, dando prioridade em vagas de emprego e em escolas. Para o conseguir, o governo chinês constituiu uma gigantesca base de dados com informações públicas e privadas, além de um sistema de reconhecimento facial alimentado por inteligência artificial. É a este sistema agressivo de vigilância que a China está agora a atribuir o seu razoável sucesso – estando por provar se os números invocados são reais – na atenuação do efeito da Covid-19.
Esta tendência para a restrição da privacidade tornou-se logo bem visível após os acontecimentos traumáticos de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, e depois quando da vaga de atentados de grupos islamitas com grande impacto na Europa ocidental e em várias outras partes do mundo, sob a forma de uma obsessão securitária que teve tanto de parcialmente necessário quanto de resultante de um aproveitamento por parte dos governos e de empresas transnacionais, contribuindo para suscitar vagas de desconfiança entre nações e grupos de cidadãos. O ódio e o medo uniram-se então para criar clivagens e enfrentamentos onde antes parecia existir uma tendência progressiva para a afirmação da experiência multicultural e da solidariedade.
No contexto da pandemia em curso, a situação coloca-se num outro patamar. É agora irrefutável a necessidade, como fator de sobrevivência coletiva, de algum controlo social destinado a evitar formas de disseminação do vírus. Este envolve algumas regras de distanciamento, em particular em espaços fechados ou de grande concentração, e também na circulação pessoal, sendo igualmente imprescindível o uso de formas de teletrabalho que possam reduzir, pelo menos enquanto não existir vacina compatível, as possibilidades de contágio, mas este tipo de medidas não pode ser imposto sem algumas condições, que são também precauções de natureza política. Sem ter em conta a defesa de um amplo espaço de privacidade, sem assegurar a liberdade de circulação, sem forçar modalidades ultrarrigorosas de teletrabalho, e sem que quem exerce a dose indispensável de controlo seja também controlado, em particular pelos mecanismos da democracia. De outro modo, sujeitamo-nos a mergulhar num mundo distópico escravizado pela hipervigilância.
Rui Bebiano
Imagem: Hong-Kong, Fevereiro de 2020 / Fotog. APPublicado originalmente no Diário As Beiras de 18/4/2020