A utopia ficciona uma comunidade, colocada fora de um tempo certo ou de um espaço real, na qual se desenha um ideal de organização, felicidade e bem-estar aplicados à vida coletiva. No sentido oposto, a distopia, ou utopia negativa, permite conceber um lugar imaginário, onde se vive sob condições extremas de opressão, desespero e carência. Frente à realidade objetiva, a utopia é principalmente um território de desejo e esperança, enquanto a distopia é um lugar de sofrimento e desolação, determinado pela transformação da natureza e pelos caminhos da intervenção humana. Em Dystopia: A Natural History, Gregory Claeys confere-lhe, no entanto, uma dimensão que pode tornar-se tendencialmente positiva, dado mostrar um conjunto de medos «naturais» (deuses, monstros, calamidades) ou «sociais» (tecnologias opressivas ou sistemas totalitários), a partir dos quais a humanidade pode confrontar-se com cenários que de modo algum deseja e por isso deverá afastar.
O século XX foi particularmente rico na oferta de obras de ficção do género distópico, sobretudo nos domínios do romance e do cinema, nas quais esses grandes temores foram representados, perante os olhos do público, como cenários de um horror provável, colocado noutro lugar ou num futuro próximo, que era imprescindível banir. Nós, de Yevgeni Zamiatine (1929), Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932), ou 1984, de George Orwell (1949), no romance, ou, para o cinema, Metropolis, de Fritz Lang (1927), Blade Runner, de Ridley Scott (1982) e a trilogia Maze Runner – Correr ou Morrer, de Wes Ball, já deste milénio, são alguns dos exemplos mais difundidos do género. Os dois últimos dão particular ênfase à forma como a rápida evolução da tecnologia pode determinar alterações assustadoras no equilíbrio ambiental, na personalidade humana ou na organização da vida política e social, sujeitas, nos cenários ali traçados, a desumanizadoras formas de tirania.
Nos últimos dois meses, quem acompanha a reflexão sobre a paisagem humana que poderá resultar da atual situação pandémica, a mais geograficamente vasta e das mais mortais na história da humanidade, apenas superada pela Peste Negra e pela Gripe Pneumónica, verá emergir possibilidades com todos os contornos de uma configuração distópica das sociedades próximas futuras. Aspetos como a imposição do distanciamento social, a contenção imposta nos espetáculos culturais e desportivos, o cadastro dos cidadãos e da sua vida privada, o controlo dos lugares de habitação, o regresso abrupto das fronteiras, a limitação da circulação humana e da presença em lugares públicos, o registo mais detalhado e regular das condições de saúde, e particularmente a instauração da vigilância pessoal, a ampliação forçada do regime de teletrabalho, o controlo informático da atividade profissional, a flexibilização total do desemprego, a própria limitação da liberdade de reunião e de protesto, bem como a intervenção mais pesada do Estado, da lei e dos mecanismos de polícia, anunciam, em nome da indispensável segurança sanitária, uma normalidade dominada por restrições à autonomia individual.
O sufocante dramatismo que esta enumeração produz poderá ser moderado pela interferência da opinião pública e das forças e instituições democráticas, assim como pelo desenvolvimento de uma consciência coletiva mais informada e colaborativa, mas a perceção das possibilidades aqui enumeradas não pode ser encarada, de forma ligeira, como um mero pesadelo que se desfará ao acordarmos. Esta configuração da distopia que a resposta à doença está a suscitar pode e deve ajudar-nos a medir melhor, com uma perceção nítida e inteligente de benefícios e danos, cada um dos passos que estão a ser dados no sentido da rápida e inevitável transformação de práticas e hábitos sociais. Frente aos pesados efeitos da pandemia, a preservação da saúde pública e a salvaguarda da liberdade individual não podem ser incompatíveis. O exemplo chinês, no qual a eficácia do combate à Covid-19, apoiada na hipervigilância, se está a fazer em detrimento da democracia e do respeito pelos direitos dos cidadãos, de forma alguma pode prosperar. Precisamos olhar com o maior cuidado os contornos do «novo normal» que aí vem, impedindo que se instale a pesada teia da distopia.
Rui Bebiano
Fotografia: Waking TimesPublicado originalmente no Diário As Beiras de 2/5/2020