Quem conhece a longa história das rebeliões populares, pelo menos daquelas que se conhecem desde os movimentos milenaristas do período medieval europeu, sabe que sempre nelas confluíram fatores contraditórios. De um lado o protesto puro, ou a resistência imperativa, postos em prática de uma forma em regra espontânea e quase invariavelmente assertiva e crua. É, aliás, nessa crueza – em regra coincidente com um baixo grau de politização – que se se situa o essencial desses levantamentos coletivos, sendo ela também aquilo que lhes pode conferir alguma capacidade para perturbar o sistema dominante e para alterar situações estabelecidas. As revoltas medievais não pretendiam instaurar regimes justos, mas antes punir reis iníquos e senhores abusivos. Do outro lado, a formulação violenta de estados de descontentamento, de situações de opressão, ou mesmo de desenraizamentos, que podem transformar esses momentos em situações algo caóticas, nas quais, da parte de alguns dos que nelas participam, a sua iniciativa poder ser desviada para atitudes desorganizadas e voltadas contra alvos que não são os principais. O puro banditismo entra, por vezes, na equação.
Nesta medida, o que está a acontecer neste momento nos EUA já aconteceu largas centenas de vezes também por ali – por exemplo, no decorrer dos tumultos associados nas décadas de 1950-1970 ao movimento pelos direitos cívicos dos negros – e muitos milhares de vezes em outros pontos do globo. Trata-se então de uma revolta, determinada por ações intoleráveis dos poderosos ou dos seus executantes, e com objetivos justos, onde, a par dos principais envolvidos, interferem setores que por vezes aproveitam aquele momento para o exercício da vingança ou mesmo do crime. Todavia, estes não podem ser olhados apenas como simples «provocadores»: na maioria das vezes tal acontece porque as situações de opressão, de desigualdade, de injustiça, de violência por parte de quem impõe a ordem social vigente, produziram franjas sociais de descontentes que vêm nas respostas exacerbadas, muitas delas indiscriminadas e de caráter violento, as únicas «à altura». Por vezes elas servem de justificação para uma pesada repressão policial, mas não é por isso que podem tapar a justeza última do protesto. Também aqui o fogo não pode ser confundido com a floresta.