O percurso humano foi sempre profundamente marcado pela violência e pela guerra. Os primeiros relatos históricos – muito curtos, expostos a partir de 3000 a.C. nas tabuinhas sumérias em argila e depois nos grandes monumentos em pedra da Antiguidade Oriental – foram, aliás, os de batalhas que exaltavam os vencedores e amaldiçoavam aqueles que os tinham afrontado, celebrando o seu massacre. A reconstituição das sociedades pré-históricas aponta no mesmo sentido: uma representação do mundo em cujo centro estava a luta pela sobrevivência e pelo poder com o exercício do confronto com o outro como principal experiência. E apesar de as primeiras civilizações terem procurado observar ocasiões de paz, estas foram sempre breves pausas entre largos períodos mergulhados em tensões e conflitos armados. A cronologia da história universal mostra como, até ao presente, pouquíssimos foram os anos sem guerras ou tumultos determinados pelo desejo de aniquilação do odiado adversário.
Como forma extrema de aversão ao outro, o ódio pode ser de ordem estritamente pessoal, mas ganha maior impacto quando adquire uma dimensão coletiva, sendo nesta que se fundam as formas mais extremas de violência, incluindo a guerra. Ele exprime-se, nesta medida, em modalidades muito diversas, que acompanham diferentes circunstâncias, épocas e lugares. Pode ser tribal, quando se refere à animosidade e ao confronto entre agrupamentos humanos com diferentes práticas, valores, tradições e sinais de identidade (sendo o futebol ou os bandos urbanos dois dos territórios da sua expressão contemporânea), mas pode também ter a forma de aversão étnica (tantas vezes associada ao racismo, à xenofobia e ao genocídio), de intolerância religiosa (sobretudo quando ligada ao fanatismo e à incompreensão perante diferentes cultos ou formas de fé) ou de rejeição de grupos sociais considerados providos de menos direitos (sendo a homofobia e a submissão das mulheres das mais disseminadas e persistentes).
Existe, porém, um ódio com uma justificação mais complexa e elaborada, e que procura mesmo desenvolver uma determinada racionalidade, não obstante o paradoxo que parece ser um «ódio racional». Articula-se com o duplo sentido habitualmente tomado pela ideologia: como corpo coerente de pensamentos, doutrinas ou visões de mundo assumidas individualmente ou em grupo e orientadas para escolhas sociais e políticas; ou como instrumento de dominação que prescreve uma forma de agir, alienando a consciência humana ao procurar impô-la. Exemplos são o ódio ao estrangeiro associado aos nacionalismos, o aplicado pelos fascismos em relação a determinados grupos sociais, ou o «ódio de classe», desenvolvido sobretudo nas franjas mais dogmáticas e autoritárias do marxismo como «motor da história». Associado em todos eles, e em muitas situações à aceitação do excluído, ou do pária, colocado nos lugares mais baixos do prestígio social e sujeito à degradação das condições de sobrevivência, da proteção jurídica e mesmo dos direitos mais básicos.
Assiste-se nesta altura ao reacender de muitos destes ódios, sustentados pela ampliação das políticas populistas e pela intervenção dos governos autocráticos, ainda que uns e outros invoquem muitas vezes a democracia representativa como fonte da sua legitimidade. Basta observar como nos Estados Unidos ou no Brasil, na Itália ou na Hungria, na Rússia ou na Polónia, na China ou na Bielorrússia, com recurso à manipulação da informação e à disseminação de falsidades, os governos ou aqueles que procuram conquistar o poder, bem como os seus porta-vozes e doutrinadores, se servem de estratégias discursivas destinadas, em nome do «povo» que consideram representar, a extremar posições, voltando cidadãos contra cidadãos. Constroem, como escreve Ernesto Laclau, «uma fronteira que divide a sociedade em dois campos e apela à mobilização dos ‘miseráveis’ contra os ‘que estão no poder’». Aqui não existe já a ideologia de que se falou atrás, ou sequer um programa político razoavelmente coerente, mas uma estratégia de poder apoiada na manipulação do descontentamento e na produção de um «nós contra eles» que tem o rancor como ferramenta e o ódio como munição.
Este é um vírus letal para a democracia, que acaba mesmo por contaminar áreas da cidadania até há pouco adeptas do debate franco e aberto. Vemos então setores que, apesar de situados no campo democrático, por vezes até em áreas politicamente muito próximas, se digladiam de forma feroz e agressiva, em vez de se esforçarem por estabelecer consensos apoiados naquilo que, respeitando a diferença de pontos de vista e de propostas, pode aproximá-los em termos de objetivos prioritários. A manipulação da informação e o caos das redes sociais têm, nesta medida, contribuído em muito para a disseminação do rancor e para a instalação de uma cultura do ódio que tudo infeta, requerendo firmeza e convicção da parte de quem, deles e dos enormes perigos que transportam, toma consciência. Nesta situação, uma informação segura, aberta, dinâmica, crítica e respeitadora da diferença pode funcionar como importante antídoto capaz de limitar a disseminação da doença. Um dia, haja esperança, de a fazer desaparecer.
Rui Bebiano
Imagem de «The Hater», filme do realizador polaco Jan Komasa (2020; disponível na Netflix)Publicado no sinalAberto de 2/10/2020