Olhamos as circunstâncias que antecederam e acompanharam estas eleições presidenciais na América e tendemos, de forma natural, a esperar um futuro próximo muito incerto, com todas as probabilidades de decorrer num cenário de conflituosidade intensa e prolongada. A hipótese de um conflito civil, que alguns catastrofistas sugerem como possibilidade, não é crível por muitas razões. Anoto apenas duas, das mais importantes: de um lado, a memória de longa duração que os norte-americanos partilham ainda da guerra que entre 1861 e 1865 dividiu a nação, originando cerca de 800 mil mortos entre militares e civis; do outro, o facto de não existirem hoje antagonismos, ou móbeis de conflito, suficientemente fortes e imperativos para impor um desenlace tão extremo. Aliás, ocorrem até fatores de proximidade que tenderão sempre a moderar um hipotético conflito generalizado, nomeadamente no que diz respeito à defesa interna do sistema político, da economia liberal e dos valores do individualismo, bem como a um certo sentido da continuada responsabilidade perante a cena política mundial, que coexistem, ainda que em grau variado, entre pessoas e grupos que têm estado em campos opostos. Permanecem, porém, escolhas e atitudes incompatíveis e exaltadas que irão impor a instabilidade e a violência.
A contagem dos votos mostrou uma nação muito mais dividida do que tem sido habitual no tradicional sistema bipartidário. Não apenas por distintas formas de entender a coisa pública, mas também, e talvez principalmente, por uma conjugação de dinâmicas culturais, credos, éticas, modos de estar e de viver, que têm definido identidades diametralmente opostas. Com um importante aditivo: a análise fina que pode começar a ser feita dos resultados das últimas eleições parece revelar que já não são as diferenças entre Estados azuis e vermelhos, a distinção norte-sul e leste-oeste, ou os conflitos de classe, a pautar com maior impacto aquilo que separa, de uma forma cada vez mais vincada, republicanos e democratas. O que determina as escolhas políticas é agora, cada vez mais, a separação entre as grandes cidades e o mundo rural, entre quem tem ou não uma posição de enfrentamento do racismo, entre os que têm acesso à cultura, ao lazer, ao bem-estar, e os que possuem a escolaridade mínima, mantendo uma vida rotineira e sem horizontes, entre os que vivem do trabalho temporário e os que têm empregos fixos, entre quem se acha «americano» por viver atrás de uma barricada e quem considera sê-lo como parte de um mundo onde intervém, entre quem vive no limiar da pobreza, sem acesso à educação e à cultura, temendo o desemprego ou que outros ainda mais pobres lhe fiquem com o trabalho, e uma classe média em boa parte imune a esse medo.
A este cenário juntou-se ainda, nos últimos anos, o fenómeno singular do trumpismo. Este introduziu na paisagem americana uma das experiências centrais do populismo, traduzida na formação de um novo bloco histórico, em condições de fazer com que a base social de um quadro político estável e hegemónico seja desarticulada e substituída por aquilo a que Chantal Mouffe chamou «um novo sujeito da ação coletiva – o povo – capaz de reconfigurar uma ordem social sentida como injusta». A esperteza do egocêntrico e narcisista Donald Trump – pois de sabedoria não cabe aqui falar – foi ser capaz de se assumir, como outros populistas fizeram em diversos lugares do planeta, enquanto porta-voz e protagonista dessa nova ordem emergente. Ela apoia-se numa ideia de «povo» como sujeito político, situado de facto acima dos partidos, dos sindicatos, dos lobbies de opinião, das associações cívicas, unido por uma explosiva amálgama de ressentimento social, fanatismo religioso, ódio às elites (inclusive as ligadas ao conhecimento), supremacismo branco, culto das armas e da violência, ignorância atrevida, e, que não se subestime este fator, uma cultura kitsch que é, como há já mais de meio século lembrou o filósofo italiano Gillo Dorfles, alimento de todos os autoritarismos e ditaduras. Neste sentido, o trumpismo exprime uma tendência que viu no Partido Republicano apenas uma incubadora.
Um panorama difícil de enfrentar que a dupla composta por Joe Biden e Kamala Harris, dentro de dois meses confirmada no poder, terá forçosamente em consideração, dado a sua intervenção configurar em primeiro lugar, não uma clara alternativa progressista ao governo de Trump – mesmo considerando o papel dos setores do Partido Democrata próximos dos senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warrren –, mas principalmente um regresso à normalidade do sistema, que a larga maioria daqueles que votaram em Donald Trump encara como uma afronta e um desapossamento do quinhão de governo que, pela interposta intervenção do líder populista, imaginava ser seu. Vamos, pois, deparar com formas de desobediência, de agressiva resistência, projetadas pelos setores populistas e pela direita mais extrema, e este cenário irá requerer de imediato, dento e fora dos Estados Unidos da América, um esforço de compreensão para com aqueles que, nesta fase, ali procuram sobretudo a salvaguarda da democracia. Tempos virão, já se sabe, em que as discordâncias com o governo de Washington irão, em relação às suas escolhas de política interna, mas sobretudo na arena internacional, tornar-se inevitáveis, frontais e mesmo imperativas. Mas cada etapa a seu tempo.
Rui Bebiano
Imagem: Celebração da vitória de Biden em Times Square, New York City (fot. Nick Shippers)