Num livro publicado em 1974, Banalidades de Base, à época um razoável êxito editorial, Raoul Vaneigem, a par de Guy Debord um dos principais teóricos da Internacional Situacionista – movimento que entre as décadas de 1950 e 1970 influenciou bastante certos meios da vanguarda artística e intelectual ocidental –, considerou que as sociedades sufocam «sob o manto de banalidades, reproduzidas de geração em geração e adaptadas ao gosto de cada época, que fazem soar através dos séculos a sentença de morte e a vaidade aplicadas aos destinos humanos». Os situacionistas procuravam conferir ao conceito de mudança revolucionária uma dimensão intensamente vivencial, não apenas associada à transformação política, e a frase de Vaneigem procurava dar conta da importância, numa lógica de emancipação, do que havia a fazer para escapar à escravizante ditadura que a banalidade exerce sobre a vida de todos os dias.
A banalidade é a expressão acabada da insignificância, da falta de rasgo, da incapacidade para criar e para encarar com ousadia e com um espírito de inovação os sucessivos episódios da vida, seja ela a pessoal ou aquela que é socialmente partilhada. Ela é irmã gémea do conformismo, que define a tendência humana para a passividade, que leva a aceitar com resignação, sem a coragem de a questionar de forma audível, toda a situação que se revele incómoda ou da qual intimamente se discorde. Na verdade, quem cultiva a banalidade como elemento constante do seu cenário de vida não desenvolve a capacidade para pensar para além daquilo que é previsível, alimentando por isso todas as formas de imobilismo. Ela teme acima de tudo a audácia, uma vez que esta comporta uma dimensão de previsão a propósito do presente e do futuro que carece sempre de inteligência, esforço e coragem.
Em política o império da banalidade é desde logo o das ditaduras e o das sociedades que perderam o dinamismo. Todavia, pode ser também o de muitas democracias. Ele começa pela instalação, como linguagem e como instrumento de poder, da repetição, da previsibilidade, da aceitação da realidade como algo diante do qual – como dizia a antiga primeira-ministra britânica conservadora Margaret Thatcher a propósito do sistema económico e social neoliberal – «não há alternativa». Aqui, sob a pesada influência da mediocridade e da simples gestão do momento, nada há a colocar em causa, uma vez que tudo aquilo que questiona o que se encontra instituído, tudo o que reivindica para além do existente, que cria e expande ou antecipa o território da novidade, tudo o que perturba o que é quotidianamente espectável, é encarado com uma grande desconfiança e combatido por quem de facto beneficia desse imobilismo.
Deparamos com este cenário mesmo na vida dos partidos políticos, que ao longo da sua existência oscilam sempre entre os momentos nos quais propõem fatores de transfiguração das sociedades, e aqueles outros em que, sobretudo quando instalados nas instituições ou associados a interesses, muitas vezes pessoais ou de grupo, perdem o rasgo e passam a repetir-se, resistindo ao que ponha em questão uma dada forma de pensar, de organizar ou de propor, tornando-se assim incapazes de retomar a dinâmica que outrora detiveram. É este um drama das democracias, que não podem viver sem a intervenção dos partidos – dos seus indispensáveis fatores de representatividade, embora não o único –, mas que, quando estes se transformam em fábricas de banalidade, vêm por essa via reduzir-se a necessária capacidade de regeneração das sociedades. O «manto de banalidades», do qual falava Vaneigem, pode tornar-se um instrumento de opressão.
Rui Bebiano
Fotografia: Pierre Lagarde, Green Distortion, 2014Publicado no Diário As Beiras de 28/11/2020