SEMIPRESIDENCIAIS – Devido ao papel de mero moderador, ou de «produtor de consensos», que na nossa Constituição detém o presidente da República, as eleições para o cargo têm sempre uma importância muito relativa. Principalmente quando, com a razoável estabilização da democracia, o panorama político deixou de deter a dimensão de polarização e de conflito aberto que mantivera até aos anos noventa. Mas também quando a generalidade das candidaturas aproveita o momento para apontar escolhas de governo que jamais poderá impor, criando, demasiadas vezes, uma cortina de ilusão pouco útil para a efetiva mobilização cidadã. Atualmente, estas eleições representam um indicador, embora não muito mais que isso.
UM AVOZINHO SIMPÁTICO – Esta situação foi reforçada com a instalação em Belém de uma personalidade particular: a de um avozinho simpático e afetuoso, desvinculado de grandes compromissos ideológicos, acessível e sem perfil autoritário, em regra visto como um árbitro honesto, de quem pode discordar-se neste ou naquele lance, mas que se aceita como inspirador de uma estável «união nacional». Marcelo tornou-se uma figura consensual, que a direita democrática não rejeita por ele ser ainda um dos seus, e o Partido Socialista aceita por, na sua perspetiva, representar um fator de estabilidade do regime que governa. Daí o caráter ridículo da apropriação da sua vitória pelo PSD e também a responsabilidade central que na sua reeleição teve a direção do PS.
O DEMAGOGO PERIGOSO – A grande e perigosa novidade destas eleições foi o terceiro lugar de André Ventura. Hoje o porta-voz de muitos cidadãos socialmente frustrados e por isso «antissistema» e antipartidos convencionais. Muitos deles pessoas ignorantes, ou gente de má-índole e rancorosa, desamparada da democracia, que sempre existiu, mas agora encontrou numa figura populista, com proclamações racistas e sexistas, ou frases sem nexo que «dizem verdades», associada à vaga mundial de regresso aos valores da extrema-direita, o momento de acreditar que finalmente «têm voz» e se aproximam do poder. E são, para já, quase quinhentos mil eleitores. A ideia de que, dada a memória do salazarismo, os progressos do Estado Social depois do 25 de Abril, o crescimento da literacia e do apoio às necessidades elementares, tal como a existência de uma realidade social estável, nos libertaria da praga política que tem assolado o mundo era, claramente, demasiado otimista.
O QUE ACONTECEU À ESQUERDA – É nas presidenciais, com as caraterísticas que tem o nosso regime constitucional, que a parte da esquerda que não tem ainda um programa claro de conquista do poder e de gestão da coisa pública, e por isso se centra quase exclusivamente, na defesa de causas, mantém dificuldade em afirmar-se. A grande quebra nas votações nas candidaturas do Bloco de Esquerda e do PCP – a primeira desceu de 10,12 % nas presidenciais de 2016 para 3,95% – traduziu, em boa medida, por um lado, a desconfiança de muitos eleitores de esquerda em relação a discursos quase somente de teor reivindicativo e antigoverno, e por outro a vontade de impedir o candidato populista de obter um previsível segundo lugar. Foi esta a relativa força da candidatura semivencedora de Ana Gomes, que agregou, visivelmente, um número muitíssimo grande de habituais eleitores do Bloco de Esquerda, uma porção razoável, embora bem menor, de eleitores do PCP, e ainda uma franja de militantes e simpatizantes do Partido Socialista. A larga maioria destes últimos, todavia, votou, como o provam os números, na simpatia conciliadora de Marcelo.
PRÓXIMO FUTURO – Destaco, a terminar, três dos sinais mais significativos que resultam destas eleições. Em primeiro lugar, a força de um candidato «consensual» saído de um sistema político onde a ideia de consenso, ampliada sobretudo a partir do nascimento da Geringonça, provou a sua relativa eficácia, conquistando adesões. Em segundo lugar, a existência real de uma extrema-direita populista que até poderá ainda crescer, que representa um perigo, mas apenas na medida da capacidade de resposta, em termos de dinâmica de projetos e de proximidade do cidadão comum, que a esquerda, plural mas capaz de aproximações, consiga oferecer. E em terceiro, que num momento de particular crise, como este que a pandemia provocou, a ideia de estabilidade surge para a larguíssima maioria dos eleitores como um bem precioso a preservar. Resta agora tirar conclusões de tudo isto e agir em conformidade. Evitando meter a cabeça na areia.
Rui Bebiano