O escândalo estalou ontem a propósito de um caso, tendo os desastrados esclarecimentos da Câmara de Lisboa que lhe sucederam conduzido rapidamente a outros. É um facto: responsáveis dos serviços camarários têm fornecido informações a embaixadas, onde identificam cidadãos responsáveis pela organização de protestos que questionam os regimes dos seus países. Sabe-se, para já, que isso aconteceu com a Rússia, com Israel, com a China e com a Venezuela. Não me admiraria se tivesse acontecido também, por exemplo, com o Brasil de Bolsonaro. De facto, pessoas com cargos numa importante instituição do nosso regime democrático têm violado a constituição e feito orelhas moucas à proteção dos dados dos cidadãos, contribuindo assim para a perseguição de opositores a Estados que, consabidamente, praticam formas avançadas, algumas delas pautadas por uma grande violência, de repressão interna da divergência.
Podemos evitar a precipitação e não inferir logo que essa repetida forma de delação foi levada a cabo sob instruções diretas do presidente da Câmara. Aliás, Fernando Medina já veio reconhecer que isto tinha realmente acontecido e afirmou ter tomado medidas para que não possa voltar a ocorrer. Mas alguém o fez e deverá ser responsabilizado por iniciativas de tal gravidade, que por certo terão prejudicado pessoas no legítimo uso do seu direito ao protesto. Alguém que, talvez procurando agradar a outro alguém, ou então por uma ignorância básica das práticas de determinados regimes, rebaixou solicitamente a sua consciência democrática ao ponto de considerar «habitual» a delação e a repressão de ativistas estrangeiros que se batem por causas que os contestam. É verdade que isto cai em cima da pré-campanha das autárquicas, mas é tão grave que de modo algum pode ser silenciado, e muito menos pode passar sem esclarecimentos céleres e transparentes.
Post-scriptum: O setor da «indignação seletiva» – só é mau quando prejudica os «nossos» – irá relevar isto, não duvido.