Saul Leiter, Café des Deux Magots, Saint-Germain-des-Prés, 1959 [mais]
No breve mas esplêndido Paris, recém-editado pela Tinta da China, um livro que data de 1991 mas contém reminiscências muito anteriores, Julien Green falava da nostalgia que experimentava pela cidade, a sua cidade, dos tempos medievais. Uma época, dizia, na qual «o homem ainda era habitado intimamente por uma paz que nós já perdemos». Essa simpatia colocava-o numa posição inteiramente oposta à enunciada pelos românticos, para os quais a fonte de atracção pelo mundo dos castelos e das catedrais advinha de uma percepção heróica e romanesca da vida que os havia preenchido. Ou, pelo menos, da vida daqueles – cavaleiros e donzelas, príncipes e santos, bom povo devoto e respeitador da vontade dos seus padres e senhores – que nesse mundo a um tempo verdadeiro e imaginado verdadeiramente contavam.
Jamais senti uma «nostalgia em diferido» dessa natureza, uma inclinação afectiva, absoluta e incondicional, pelo silêncio e pelos seus cenários plausíveis do passado. Mas tenho-a – com a mesma legitimidade e idêntica dose de engano – por certos tempos de ruído que não vivi. Nos quais era possível experimentar rumores que, ao invés daqueles, misturados, que hoje nos seguem para todo o lado, mesmo até ao interior das casas e dos quartos onde dormimos, pareciam então o único ruído sobre a Terra.
De todos eles, vindos de diferentes tempos, um daqueles que se afigura como mais atraente e fecundo para pessoas da minha geração, ou próximas dela, talvez seja o de certos cafés da Paris do pós-guerra, narrados e reinventados em inúmeros filmes e romances, ou pelas descrições de espectadores em trânsito como Antony Beevor (Paris after the Liberation: 1944 -1949, já traduzido), Stanley Karnow (Paris in the Fifties) ou James Campbell (Paris Interzone. Richard Wright, Lolita, Boris Vian and others on the Left Bank 1946-1960). Nos quais a ressaca dos anos beligerantes de pólvora e morte, da desconfiança perante todos os olhares, dos futuros sitiados, parecia abrir espaço para todos os possíveis mais impossíveis, incluindo-se nestes o desfrute do excesso. O fragor nocturno/diurno das conversas cruzadas, o fumo dos cigarros consumidos até ao fim em ambientes fechados, os aromas da pastelaria fina, das bebidas alcoólicas, da roupa das mulheres, da tinta no papel: tudo parecia evocar um início de mundo.
Dir-me-ão que, no fim de contas, nada terá sido assim, que tudo aquilo que se conta daquela Paris de depois da Libertação é coisa que vem dos livros, do cinema francês de autor, das canções usadas de Madame Gréco, dos maços fétidos de Gauloises. Mas os nossos acessos de nostalgia não vêm apenas do que vivemos: ele chegam também, e talvez em primeiro lugar, daquilo que imaginamos ter sido vivido pelos outros, daquilo que criamos a partir de indícios. Que jamais vimos fora das fotografias que recuperamos hoje com retoques de Photoshop, ou de sequências de filmes guardadas no YouTube. Das quais se vai apropriando a nossa memória, memória construída, de ladrões de passados.