Encontrei hoje em artigo de jornal, uma vez mais, o uso do conceito de tradição a servir como argumento de autoridade para justificar uma dada escolha. De acordo com esta maneira de pensar, isto ou aquilo é bom, ou está certo, ou é adequado, ou deverá acontecer, porque se inscreve numa sequência que se crê repetida. Ao invés, para quem segue esta lógica, uma determinada escolha deverá ser modificada, ou mesmo rejeitada, porque se manifesta «contra a tradição». Como se sabe, o termo tradição vem do latim traditio, que tem o significado de «entrega» ou «passagem de testemunho», e integra a transmissão social, realizada dentro de um mesmo tempo ou passada de geração em geração, de determinados costumes, comportamentos, hábitos, memórias, rumores, crenças ou lendas.
Se a sua presença permite definir marcas de continuidade sociológica e histórica, conferindo uma dimensão de identidade a determinados grupos ou sociedades, e isto pode produzir efeitos positivos, detém igualmente, com frequência, um papel negativo, dado transformar toda a novidade em algo contendo uma dimensão ou um sentido que devem ser abertamente rejeitados. Em alguns territórios, ou dentro de determinados grupos, a ideia de repetição que a tradição supõe procura até integrar uma dimensão de futuro: é o caso da sua inclusão em programas eleitorais que emergem em autarquias ou corporações profissionais em boa parte em nome do passado. O conservadorismo político bebe nesta dimensão a sua força, uma vez que basicamente rejeita aquilo que pareça cortar, na forma ou na essência, com esse passado.
Todavia, a história, a sociologia, a antropologia ou a etnografia mostram que não existem tradições imóveis: todas vão mudando ao longo do tempo, como todas foram criadas, por vezes praticamente do nada, a uma dada altura do vivido. Em A invenção das Tradições, obra publicada em 1984 pelo historiador britânico Eric Hobsbawm, este falava de «tradições inventadas» como «conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras que são tácita ou abertamente aceites […], de natureza ritual ou simbólica, que visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado». Ou seja, para Hobsbawm elas não nascem de forma espontânea, mas no contexto de equilíbrio sociais momentâneos, refletindo harmonias presentes num dado momento, mas que se alteram num outro.
É nesta dimensão que muitas tradições se podem revelar como fortes obstáculos ao progresso, funcionando como mecanismos que servem sobretudo para impedir a inovação, para reproduzir relações sociais ou equilíbrio culturais que de facto se situam já fora do tempo, e para dar a ideia que estas são, afinal, ao mesmo tempo naturais e legítimas. Um bom exemplo desta função é aquele fornecido hoje pelas chamadas «tradições académicas», que em algumas instituições de ensino superior, antigas ou novas, procuram representar como atuais, e como merecedoras de consideração, estruturas hierárquicas na realidade caducas, ou anacrónicas, muitas delas fundadas até na opressão, na rejeição da liberdade e na ausência de direitos humanos que hoje são maioritariamente tomados como fundamentais e inquestionáveis.