Apesar de ter sido curta a militância a que posso chamar partidária – só entre os finais de 1970 e meados de 1977 – creio que me interesso militantemente por política desde os 13 anos, quando, talvez sem compreender muito bem o enredo em que me estava a meter, consegui convencer os colegas de turma do antigo 3º ano do liceu a não irem aplaudir um ministro de Salazar de visita à escola. Daí até hoje já passaram mais de cinquenta anos, e nem por um só momento – antes, durante e depois do 25 de Abril – deixei de «militar» na área da esquerda, a favor de causas que me têm parecido justas, urgentes ou eticamente necessárias. Todavia, essa militância teve sempre, nas suas diferentes fases, um traço comum: ser um espaço de aproximação aos outros, fossem estes aqueles que eram os companheiros e as companheiras do combate do momento, ou os que se inscreviam no dever de solidariedade para com os cidadãos aos quais este dizia respeito. Jamais um lugar para odiar quem, estando no essencial do mesmo lado da barricada, de mim discordasse.
Foi assim que vivi a experiência de aproximação das várias esquerdas parlamentares que terminou com o pesadelo do governo de Passos Coelho. A Geringonça, palavra inventada pela direita para depreciar uma aproximação que julgavam espúria, mas que a esquerda fez sua e tomou como simpática, constituía-se então como inesperada aproximação entre parentes desavindos desde os últimos anos do Estado Novo. Destinada, não a diluir as suas fatais e consideráveis diferenças (algo que vez alguma esteve em causa!), mas a colaborar no afastamento de uma direita insaciável no seu ódio à justiça social e aos direitos mais essenciais. E foi nesse processo de colaboração – dentro de cada um dos partidos ele teve os seus inimigos, embora sempre em minoria – que, pela primeira vez em largas décadas, muitos militantes e simpatizantes das diferentes vertentes da esquerda viram que «o outro» não tinha aquela dimensão estranha, incompreensível ou mesmo repulsiva que décadas de ausência de debate e de mitos tinham instalado. Tudo agora parecia tender para uma aproximação das esquerdas que, na sua diferença, incluiria projetos comuns.
Daí o choque vivido por estes dias, quando observo membros (mais membros que eleitores, sem dúvida) do Bloco de Esquerda e do PCP, referirem-se ao PS e ao seu atual núcleo dirigente – goste-se ou não, provavelmente o mais à esquerda de toda a história institucional do Partido Socialista, desde 1973 –, ou mesmo a quem concorde publicamente com algumas das suas propostas, como sendo impenitentemente «de direita» e «contra os interesses dos trabalhadores». Usando com frequência a linguagem indisfarçável do menosprezo e do rancor. Da mesma forma que vejo, ainda que em bem menor percentagem, socialistas falarem dos outros dois partidos da esquerda parlamentar como associações de chantagistas a quem pouco interessa a democracia. Não falo agora das razões que a isto conduziram, mas de uma alteração rápida e profunda de um quadro de proximidade que, se não for contrariada por um esforço de ponderação e compreensão, poderá conduzir-nos a mais meio século de desavenças. Que apenas beneficiarão os inimigos do Estado social, da democracia e de uma vida com direitos. Aqueles que a Geringonça de 2015-2019 permitiu colocar num lugar de irrelevância, mas a quem agora parece estender-se a passadeira vermelha.
Rui Bebiano