Na vida de todos os dias, seja a pessoal ou a coletiva, nunca é boa solução encarar os erros e os maus momentos como se não tivessem acontecido, silenciando-os ou escondendo-os no fundo da consciência, de onde se presume não mais saírem. Na verdade, como mostrou a psicanálise, isto jamais acontece, pois acabam sempre por voltar, por vezes da pior maneira. A história vive um idêntico problema, com omissões e apagamentos que, tarde ou cedo, ressurgirão sob outra forma. A frase imperfeita de Hegel sobre a ocorrência de factos históricos «pelo menos duas vezes» foi esclarecida por Marx, que lhe juntou «a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa».
Assim tem acontecido também na já longa história do socialismo, onde as grandes conquistas sociais e políticas, os ideais progressistas e mobilizadores, os combates heroicos e difíceis, tantas vezes acabaram por redundar na sua perversão, transformando a grande utopia da solidariedade e da liberdade que ela contém em formas de sujeição ou de distopia. Infelizmente, mesmo quem, pertencendo a este território político, reconhece ter existido nesse passado um lado negativo, considera preferível omiti-lo. Outros ainda, presos a parte do passado que nostalgicamente erguem como símbolo, afirmam que nada de mal teve lugar.
Em outubro de 1956, na Hungria, uma manifestação reprimida pela polícia desencadeou a primeira tentativa de democratizar o socialismo de Estado e de partido único, ampliando as liberdades públicas. A oposição ao regime cresceu então rapidamente, acabando por tomar o poder na capital. O derrube da estátua colossal de Estaline tomou um particular simbolismo, enquanto se perseguiam na rua agentes da polícia política e funcionários do governo. Imre Nagy, um comunista reformista, foi nomeado primeiro-ministro, mas os setores estalinistas apelaram à intervenção de Moscovo, tendo uma poderosa força soviética entrado a 4 de novembro em Budapeste. A resistência durou menos de uma semana, com milhares de mortos e 200.000 refugiados. Nagy e outros dirigentes foram julgados como «traidores» e executados, sucedendo-se as prisões em massa.
Cerca de doze anos mais tarde, em agosto de 1968, nova invasão das tropas soviéticas pôs termo, na antiga Checoslováquia, à «Primavera de Praga», uma segunda tentativa, iniciada em fevereiro desse mesmo ano, de nos Estados do «socialismo realmente existente» combinar a experiência prática do poder com a descentralização e a abolição da censura. O regime de Alexander Dubček, também ele um comunista renovador, instalado no poder com um grande apoio popular, num clima festivo e de fervor patriótico que se prolongou por vários meses e chamou a atenção do mundo, foi rapidamente afastado e substituído por uma gerontocracia de burocratas que impôs o fechamento dos jornais e dos programas de rádio e televisão entretanto abertos, bem como o fim das comissões de trabalhadores e outros cidadãos que nas empresas, escolas e bairros tinham surgido para dinamizar a mudança. Muitos também destinados às prisões.
A forte repressão da «revolução húngara», e depois a da «primavera de Praga», foram então responsáveis por um grande número de dissidências e de abandonos nos partidos comunistas da Europa ocidental. Alienaram também, apesar do esforço da propaganda no sentido de julgar os reformadores como vulgares «contrarrevolucionários», uma parte muito significativa do apoio que a esses partidos e aos Estados do «socialismo real» vinha dando parte importante da intelligentsia e da opinião pública mundial. Foram dois momentos que ajudaram a preparar e a explicar esse acontecimento perturbante e de viragem da história recente que, a 9 novembro de 1989, constituiu o derrube popular do Muro de Berlim. Com as suas contraditórias consequências, ele não pode ser apagado da memória.
Rui Bebiano
Fotografia de Erich Lessing. Combatentes e apoiantes do governo reformista húngaro em outubro de 1956.Publicado no Diário As Beiras de 27/11/2021