Este artigo sobre as legislativas foi começado há semanas, ainda sob o efeito de choque da reprovação do Orçamento. Levou, entretanto, algumas voltas, embora as ideias que contém sejam sensivelmente as mesmas da primeira versão, compensando apenas a surpresa e a perturbação daquele momento com uma maior intervenção da razão. Reflete a posição de um cidadão sem partido, politicamente empenhado e alinhado à esquerda – afirmar a antinomia esquerda-direita como ultrapassada, como volta agora a escutar-se, é sempre uma posição de direita – que procura refletir sobre esta nova encruzilhada em que se encontra a nossa democracia.
Não devemos esquecer o que passámos nos últimos dez anos. Em 2011, quando a direita neoliberal tomou conta do governo e impôs quatro anos de depauperamento, perda de direitos e depressão coletiva, foi possível compreender o que poderia representar romper o cordão umbilical com os avanços sociais conquistados a partir da Revolução de Abril. No contexto da crise financeira e de uma aceitação total dos ditames da troika, o governo PSD/CDS deixou então os mais desfavorecidos e a classe média entregues ao seu destino e à incerteza. Um tempo felizmente fechado quando, com as eleições de 2015, um governo do PS sustentado numa maioria parlamentar plural de esquerda foi capaz de reverter essa tendência, inaugurando um tempo de reposição de direitos e de progresso.
Este governo caiu no final de outubro passado, quando o orçamento de 2022 proposto pelo governo foi rejeitado, num processo que deveria – dentro das diferenças de perspetiva de representatividade dos partidos de esquerda, sem dúvida mais evidentes nos últimos dois anos – ter sido conduzido e fechado pelos partidos intervenientes de um modo diverso e que não tivesse levado à convocação de eleições antecipadas para o próximo 30. Todavia, esta situação não pode impor um regresso ao passado, podendo até constituir uma pausa para recuperar o fôlego no processo de construção «à esquerda» de um país melhor, mais produtivo, justo e livre.
O processo implica acordos de governabilidade que viabilizem medidas essenciais. Estas foram enumeradas num apelo assinado por cem pessoas sem partido e com intervenção pública regular – fui uma delas –, designado «Por uma maioria plural de esquerda». Passam pela defesa e valorização do Serviço Nacional de Saúde, cuja eficácia a pandemia confirmou; pela salvaguarda dos direitos do trabalho, revertendo leis laborais do tempo da troika; pela recusa de uma economia baseada nos baixos salários e na precariedade; pela aplicação de uma política de habitação pública que responda à especulação, não esvaziando os centros das cidades promovendo a segregação social e racial; pelo crescimento consequente do ensino público; pelo apoio à produção cultural e aos seus profissionais; pela recusa em usar a urgência climática como oportunidade para negócios.
Ao contrário de outras eleições, não me sinto nesta altura em condições de apoiar de forma explícita um dos partidos de esquerda que deverá obter representação parlamentar (BE, Livre, PCP-PEV e PS). O que faço, sem a menor hesitação, é sugerir a quem me lê que não se abstenha no dia 30 e ajude a promover, votando num deles como eu farei, uma maioria plural de esquerda. Uma maioria capaz de renovar e de reforçar a pluralidade que impediu o retrocesso social que troika e governo de direita procuraram impor, e que permitiu restaurar alguma justiça social e económica. Realça o referido apelo: «Seja qual for o futuro, só essa pluralidade pode construir o diálogo, a alternativa e a resistência. Sem ela, a esquerda derrota-se. Com a pluralidade, a agenda de esquerda para um desenvolvimento mais justo e sustentável sairá reforçada.» Não poderia estar mais de acordo.
Rui Bebiano
Fotografia de Igor DemidovPublicado no Diário As Beiras de 8/1/2022