Tem-se falado muito do papel do voto útil, mas não do desempenhado pelo voto de protesto. O tema foi de certo modo trazido hoje para o debate por um artigo de opinião da autoria de Boaventura de Sousa Santos saído no Público («A esquerda é burra?»). Nele se coloca a possibilidade de, no dia 30, poder existir alguma transferência de voto do PCP, e sobretudo do BE, para a extrema-direita. Foi o suficiente para um grande número de pessoas se erguer em protesto contra uma possibilidade que lhe parece impossível, passe o pleonasmo. Infelizmente, se olharmos com atenção para a realidade, veremos que assim não é.
Ninguém que convictamente se declare de esquerda poderá, por muitas dúvidas ou divergências que tenha com os partidos que povoam esse largo espaço político, seguir um trajeto dessa natureza. Da minha parte, e acreditem que não estou a exagerar, mais fácil seria deixar que me cortassem uma veia jugular. Todavia, como tem sido amplamente demonstrado em outras paragens – Reino Unido, França, Itália, Espanha, Alemanha ou Grécia, para só dar alguns exemplos – existe um voto essencialmente de protesto e anti-sistema, de setores marginalizados, empobrecidos e de escassa formação política, que responde facilmente a propostas simples e diretas capazes de apelar aos seus instintos ou mais imediatos interesses.
Por muito que custe admiti-lo, é bem possível, como ocorreu também nos países citados – cedo no Reino Unido, por exemplo, se assistiu a cidades inteiras, com grande tradição de luta sindical e que durante décadas votaram sempre no Labour, transitarem rapidamente para um apoio a conservadores da linha dura ou mesmo à extrema-direita do UKIP – que uma parte dessas pessoas seja perfeitamente capaz, sob a influência da retórica populista, de transferir o seu voto de uma barricada para a outra. Será mesmo quase inevitável que assim aconteça. Por muito que isso nos pareça indesejável, inaceitável ou mesmo impossível. Mas isso é a nós, desgraçadamente não a elas.
Rui Bebiano